Segunda Roda:uma homenagem a Bucefalo Caligulis e Onanlegrense Tavarish

sábado, 9 de janeiro de 2010

Sobre o Judaismo Progressista:

um ensaio de afinidade eletiva

Airan Milititsky Aguiar*



O presente ensaio visa sistematizar parte de pesquisas realizadas sobre uma clivagem política, pouco conhecida, no Judaísmo: o Judaísmo Progressista. Tal campo foi institucionalizado com a criação de uma rede internacional de entidades culturais judaicas: o IKUF. O Idisher Kultur Farband (Federação Cultural Judaica) foi criado na esteira da estratégia de Frentes Populares, estipulada pelo VII Congresso do Komintern (Internacional Comunista ou Terceira Internacional), na luta antifascista que iniciara na Guerra Civil Espanhola. Sua idealização ocorreu junto ao Congresso dos Escritores Antifascistas, realizado em Paris, em 1937. Esta rede teve varias secções no Brasil, entre elas o Clube de Cultura em Porto Alegre, cuja trajetória é meu objeto de pesquisa.
Para analisar esta trajetória, é fundamental a compreensão do Judaísmo Progressista. No transcorrer da pesquisa foram constatados alguns paralelos entre o judaísmo e as ideologias de esquerda, a partir de alguns indícios do que se chamou idichismo. Esses paralelos ganharam um aporte teórico a partir do conceito weberiano de afinidade eletiva, extraído dos estudos de Michel Löwy sobre romantismo e messianismo judaico.
Afinidade eletiva é entendida como “um tipo particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais, não redutível `determinação causal direta ou à “influencia” no sentido tradicional. Trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão.”
Pretende-se, portanto, analisar a afinidade eletiva entre certo messianismo judaico e ideologias de esquerda em uma figura nova: o Judaísmo Progressista. Extrapolando as hipóteses de Löwy, busca-se estabelecer o campo no qual decorreram as práticas do Clube de Cultura e seus atores até meados dos anos 60 do século passado.

Sobre o messianismo judaico
Trabalhando a partir dos conceitos cabalísticos de Tikun e Galut, construiremos os elementos do messianismo judaico que, plenamente arraigados desde o século XVI, constituem um substrato do judaísmo contemporâneo.
O Tikun, literalmente restauração, é o centro do misticismo de Isaac Luria, cabalista judeu nascido em Jerusalém no ano de 1534 e falecido em Safed por volta de 1572. Segundo Gershon Scholem, o pensamento de Luria e sua escola “foi o ultimo movimento do judaísmo, cuja influência veio a ser preponderante em todos os setores do povo judeu em cada país da diáspora, sem exceção”.
A teoria do Tikun pode ser sintetizada como a reconstituição da harmonia quebrada, no plano humano, com a queda de Adão ao comer o fruto da arvore do conhecimento. A partir dessa queda, o povo judeu foi obrigado a viver em estágios transmigratórios. A vida nesses estágios é chamada de Galut, literalmente exílio, mas no sistema lurianico, conforme Scholem, adquire um novo significado:
Anteriormente fora considerado [o galut] (...) quer um castigo pelos pecados de Israel, quer uma provação para fé de Israel. Agora ainda é tudo isso, mas intrinsecamente é uma missão: seu propósito é o de reerguer as centelhas caídas de todas as suas variadas localizações. “E este é o segredo por que Israel está fadado a ser escravizado por todos os gentios do mundo: a fim de que possa elevar aquelas centelhas que também caíram entre eles... E por isso era necessário que Israel se espalhasse pelos quatro ventos a fim de levantar tudo”
Para realizar o Tikun, cabe ao homem reordenar essas centelhas e restaurar a harmonia original destituindo a mácula. Segundo Scholem, o homem é parte ativa do processo, pois Deus não pode realizar por seus próprios meios esta “tarefa”. O Tikun acontece, portanto, na vida pública, é um acontecimento visível:
O messianismo judeu é, em sua origem e em sua natureza – nunca é demais insistir nisso -, uma teoria da catástrofe. Essa teoria insiste no elemento revolucionário, cataclísmico, na transição do presente histórico ao futuro messiânico.

O messianismo judaico e ideologias de esquerda no Judaísmo Progressista
Em 1958 o IKUF encaminha as pré-teses para seu congresso ao Clube de Cultura, onde postula:
A parcela consciente da população judaica do Brasil deve combater as manifestações reacionárias que fazem com que a juventude judaica ignore as necessidades do país e encaminham a juventude em direções que não coincidem com os interesses de amplas massas brasileiras com as quais a população judaica está estreitamente ligada. Pelo contrário, atendem aos interesses das camadas privilegiadas que por natureza se inclinam para todas teorias ant-populares [sic] tais como: facismo [sic], racismo, anti-semitismo, que ameaçam a própria existência da coletividade judaica.
Nesta tese encontramos a vinculação do Judaísmo Progressista na estratégia estipulada pelo movimento comunista internacional. A mácula a ser combatida são as camadas privilegiadas e suas pretensas ideologias discriminatórias, que não afetam somente a comunidade judaica mas, também, amplas massas brasileiras. Neste trecho, é notável a linha do Partido Comunista Brasileiro, que nesta época dirigia o IKUF no Brasil, da etapa democrático-burguesa da revolução brasileira, mantendo a perspectiva nacional-libertadora da formulação por Astrogildo Pereira e Octavio Brandão.
Em agosto de 2006 houve um encontro das instituições culturais judaico progressistas em Montevidéu no Uruguai. Em sua declaração final encontra-se:

1. Nuestra identidad como judíos progresistas se encuentra ligada a una concepción humanista y laica que implica pensar, actuar, vivir con una serie de principios bajo reglas humanistas, solidarias de justicia social, respeto a los derechos del otro, tolerancia, y aceptación de las diferencias concebidas desde el principio de nuestra historia milenaria.
2. La identidad judía así concebida lejos de tener un carácter exclusivista es fruto de la integración con las sociedades en las cuales vivimos y que pretendemos vivan nuestras futuras generaciones.
Nos pronunciamos por la Multi-centralidad de la vida judía. Esto significa que las colectividades establecidas a lo largo y ancho del planeta tienen el derecho y el deber de hablar por si mismas, decidir y fomentar sus formas institucionales y de desarrollo cultural especificas en armonía con las realidades, necesidades y sueños de los pueblos de los cuales son parte (grifos meus)

Nota-se, sobretudo nas partes grifadas, uma extrema homologia com a concepção de Galut. Os Judeus da diáspora, nesse entendimento, devem agir em suas especificidades atuando para obter justiça social, tsedaká. Tal ênfase, numa re-harmonização, é corroborada pela seguinte passagem das mesas de trabalho do encontro:

Un Argentino/Brasilero/Uruguayo Judeo progresista hoy se define como:
Judeo Argentino/Brasilero/Uruguayo progresista porque sus orígenes reconocen una doble raigambre: la argentina/brasilera/uruguaya y la judía. De allí su compromiso y accionar. Reivindicando como suyo tanto el patrimonio socio-cultural del pueblo judío (construido creativamente a través de las sucesivas generaciones), como las más genuinas tradiciones populares y nacionales de nuestro suelo, en un fecundo enraizamiento.
Progresista por sostener que las respuestas a las demandas de la actualidad no se resuelven de manera individual, sino desde una concepción solidara, fraterna y colectiva. Proponiendo el crecimiento y desarrollo de los individuos sobre los que influencia, con el objeto de lograr de estos una actitud crítica y transformadora de la realidad que les toca vivir. Junto a las luchas populares y democráticas del pueblo argentino/brasilero/uruguayo por un mundo más justo, digno de ser habitado por todos, con las mismas condiciones y posibilidades.
Laico, en tanto prescinde de toda connotación religiosa en sus acciones y no acepta toda intromisión de la religión en el gobierno y la educación publica, respetando toda adhesión personal a cualquier religión.
Humanista por que nos interesa la realización total de la vida humana, asegurando su dignidad, su bienestar y su desarrollo.
Antifascista por su lucha contra cualquier forma de intolerancia, autoritarismo, militarismo o expresiones genocidas del poder o gobiernos que amenacen la paz y la seguridad de los pueblos, así como su convicción de la necesidad de construir sociedades sustentadas en la democracia y la igualdad de todos los seres humanos.
Antirracista (antidiscriminatorio) por estar contra todo tipo de discriminación (religiosa, social, cultural, étnica, de genero, etaria), y fundamentalmente contra el antisemitismo.
Judíos argentinos/brasilero/uruguayo por sus precedentes históricos, por lazos familiares, por sus tradiciones, acervo cultural, decisión personal y por que nada de lo atinente a la colectividad judía y a la vida nacional le es ajeno e indiferente.
El judío progresista frente a este siglo XXI debe ser un militante por estos objetivos, pero no deben ser aplicados mecánicamente sino, de acuerdo a una concepción dinámica de la historia, adaptándolos a una determinada realidad social del país. La tarea de ganar a la colectividad para las causas democráticas, no establece prioridades. La realidad objetiva genera un proceso dialéctico en el que lo especifico y lo general (o sea la colectividad y lo nacional (se influyen reciproca y simultáneamente. Los cambios que se producen en el proceso político del país, van precisando nuestras posiciones.(grifos meus)

Nesta passagem está elaborada a fusão das duas configurações distintas, o messianismo, em seus aspectos de Tikun e Galut, a vida nas diásporas recolhendo as centelhas dispersas entre elas na busca de uma re-harmonização do todo social, a destituição da mácula, com a utopia revolucionária, sobretudo na perspectiva da máxima marxiana “de cada um conforme as suas possibilidades a cada um conforme as suas necessidades”.
Estabelecendo o homem como um agente da história, nas condições postas por Marx em “18 de Brumario”, existe uma inegável correspondência entre as duas configurações. Essas correspondências historicamente foram ativadas, postas em uma relação dinâmica, nas conjunturas do final do século XIX e início do XX, primeiramente no processo revolucionário soviético, quando inúmeros judeus se somam à luta anticzarista buscando a sua emancipação juntamente a emancipação proletária, e posteriormente na luta antifascista a partir da Guerra Civil Espanhola.
Ainda as mesas de trabalho do Congresso de Montevidéu colocam:
Nosotros creemos en el pluricentralismo y en la autonomía de cada comunidad, para determinar su propio destino sobre la base de sus propios intereses, con sus rasgos y grados de evolución, interconectados por razones históricas, ancestrales, culturales y tradicionales. Como parte del pueblo judío y como contribución a su propio desarrollo comunitario, fomenta el conocimiento y las relaciones intercomunitarias.- Nuestro meridiano político pasa por nuestro país, en la inteligencia de que no hay “cuestión judía” que surja al margen de la vida nacional y que pueda ser resuelto independientemente de la solución de los problemas nacionales.
(...)
Pero creemos que vale la pena transitar con todos los más posibles el camino de la creación de una contracultura de la resistencia a un modelo político y a un sistema socioeconómico que se oponen al humanismo, la justicia y la paz.
Desde fins da segunda guerra o judaísmo progressista se direciona entorno do projeto amplo de Paz. Essa paz, especialmente entendida nos desdobramentos da questão palestina, os progressistas demandam a pluricentralidade da vida judaica, Galut e postulam a divisa dois povos, dois estados, visa a emancipação do povo judeu conjuntamente com a emancipação da humanidade. Como a metáfora marxiana de fim do reino da necessidade e inicio do reino da liberdade, a cabala lurianica postula a passagem do Olam Ha-Tohu, mundo do caos, para o Olam Ha-Tikun, reino da harmonia: o fim da pré história da sociedade humana. Nota-se novamente a homologia entre a concepção messiânica, a tarefa do povo judeu, e a perspectiva revolucionaria em Marx, e a tarefa do proletariado.

Considerações finais
Não se pretendeu fazer um estudo exaustivo da afinidade eletiva entre messianismo judaico e utopias revolucionárias no judaísmo progressista, mas sim elaborar uma sistematização de alguns resultados de pesquisas realizadas com esse intento.
A documentação do Congresso de Montevidéu possibilita ir muito além do que foi exposto e trabalhado acima. No entanto buscou-se delinear as linhas mestras de futuros trabalhos a partir de temas centrais elaborados a partir da perspectiva de Michel Löwy.
A documentação ddo Clube de Cultura encontra-se esparsa e sob muitos aspectos incompleta, ainda em fase de catalogação e arquivamento. Dos antigos militantes em Porto Alegre, a maioria já faleceu e o Clube de Cultura rompeu com o IKUF em 1962.
Na tentativa de elaborar um modelo que possibilite analisar a trajetória da entidade na primeira conjuntura, nos anos 50, da hegemonia do ídiche e do Judaísmo Progressista, o trabalho com a documentação advinda do Congresso de Montevidéo é de suma importância. Ela possibilita elaborar um quadro que aproxima a reconstituição tanto do leque de possibilidades quanto do habitus dos atores em Porto Alegre. Dessa maneira, dando elementos fundamentais para a pesquisa sobre a trajetória da entidade.

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