Segunda Roda:uma homenagem a Bucefalo Caligulis e Onanlegrense Tavarish

segunda-feira, 29 de março de 2010

José Afonso - Canto Moço



Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de manhã clara

Lá do cimo de uma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Companhera da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo de uma montanha

Onde o vento cortou amarras
Largaremos p'la noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca, brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Crônica Pelotense

Pelotas é uma cidade muito interessante, principalmente pela alta concentração de meninas bonitas por metro quadrado. Segundo, pois realmente é a cidade das bichas, mas bichas em português de Portugal. Nunca vi tanta fila. Vi muitos putos (meninos) em bichas.

Pulemos os intróitos e vamos ao que importa. Pelotas é uma cidade dos prazeres, dos prazeres da carne e dos prazeres da alma. É cidade em que nos deparamos facilmente com a felicidade, mas toda felicidade comporta em si mesma uma carga de tristeza.

Conheci pessoas especiais, fiz amigos, inimigos... Porém, não quero falar dos amigos dos inimigos ou de quem quer que seja, quero falar de mim. Em Pelotas notei que novamente posso ser feliz, alegre, divertido, despreocupado. Passei anos ocupado com o que os outros queriam que eu fosse ou fizesse.

Não notei isso sozinho, tive ajuda de algumas pessoas, que como por afinidades eletivas apareceram em minha vida. Voltei novamente a um estado de espírito que há anos não sentia. Agradeço pelo enlace alquímico proporcionado pela dupla Madame Min e Maga Patológica.

Agradeço por terem criado as condições necessárias para que novamente eu amasse, me apaixonasse por elas, pelo conhecimento e, sobretudo, pela vida. Notei que não são as coisas, as pessoas, os lugares que nos fazem, elas apenas nos permitem ser. Assim, permitiram que novamente, como que por um passe de mágica, eu tivesse reencontrado a felicidade.

Tocou a campainha, fez blin blom,

Borboletas na barriga,

Com pozinho de pirinlinpimpim

Melhor dos meus beijos para vocês,



AMA

Pelotas, Marina Ilha Verde, 22 de fevereiro de 2010.



P. s.: Cuida bem do meu livro, lê direitinho que em breve eu volto para buscar!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Homem, ser que responde!

Homem,


ser que responde!

Responde ao certo e ao errado,

até mesmo aos silêncios...



Homem,

Ser que procura!

Procura a felicidade e a ventura

Até mesmo nos silêncios...



Homem,

ser imbecil!

Imbecilizado, coisificado,

por seu medo de amar,

por seus silêncios...



Homem,

Ser covarde!

Faz do outro seu sofrimento,

Mesmo por seus silêncios...



Homem,

ser de amor,

A faculdade mais digna do seu ser,

Sobretudo,

quando rompe com seus silêncios!


AMA, dezembro de 2009

sábado, 23 de janeiro de 2010

Roite Ydn und Comicio da Vitoria 1945



Comicio da Vitoria 1945.
Omar Guazeli, Azevedo, Jacob Koutzii e Andre Paulo Franck, Circulo Social Israelita

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O POVO AO PODER

Castro Alves

Quando nas praças s'eleva
Do Povo a sublime voz...
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz...

Que o gigante da calçada
De pé sobre a barrica
Desgrenhado, enorme, nu
Em Roma é catão ou Mário,

É Jesus sobre o Cálvario,
É Garibaldi ou Kosshut.

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!

Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua seu...
Ninguém vos rouba os castelos

Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.

Na tortura, na fogueira...
Nas tocas da inquisição
Chiava o ferro na carne
Porém gritava a aflição.
Pois bem...nest'hora poluta

Nós bebemos a cicuta
Sufocados no estertor;
Deixai-nos soltar um grito
Que topando no infinito

Talvez desperte o Senhor.

A palavra! Vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão.
Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma,
Ai cidade de Vendoma,
Ai mundos de cem heróis,
Dizei, cidades de pedra,
Onde a liberdade medra
Do porvir aos arrebóis.

Dizei, quando a voz dos Gracos
Tapou a destra da lei?
Onde a toga tribunícia
Foi calcada aos pés do rei?
Fala, soberba Inglaterra,
Do sul ao teu pobre irmão;
Dos teus tribunos que é feito?
Tu guarda-os no largo peito
Não no lodo da prisão.
No entanto em sombras tremendas
Descansa extinta a nação
Fria e treda como o morto.
E vós, que sentis-lhes os pulso
Apenas tremer convulso
Nas extremas contorções...
Não deixais que o filho louco
Grite "oh! Mãe, descansa um pouco
Sobre os nossos corações".

Mas embalde... Que o direito
Não é pasto de punhal.
Nem a patas de cavalos
Se faz um crime legal...
Ah! Não há muitos setembros,
Da plebe doem os membros
No chicote do poder,
E o momento é malfadado
Quando o povo ensangüentado
Diz: já não posso sofrer.

Pois bem! Nós que caminhamos
Do futuro para a luz,
Nós que o Calvário escalamos
Levando nos ombros a cruz,
Que do presente no escuro
Só temos fé no futuro,
Como alvorada do bem,
Como Laocoonte esmagado
Morreremos coroado
Erguendo os olhos além.

Irmão da terra da América,
Filhos do solo da cruz,
Erguei as frontes altivas,
Bebei torrentes de luz...
Ai! Soberba populaça,
Dos nossos velhos Catões,
Lançai um protesto, ó povo,
Protesto que o mundo novo
Manda aos tronos e às nações.

GOLGHER, Isaias. Evolução histórica do povo judeu: síntese dos movimentos populares judaicos na antiguidade. Belo Horizonte: [n.i.], 1951, p. 28-29, 36.

Pelo estudo, feito por nós, da situação econômica do Egito no
referido período, torna-se perfeitamente compreensível a viabilidade
do Êxodo. A sua inexistência é que seria de admirar-se, dados o
caráter revolucionário, profundamente social, do movimento
mosaico, e a conseqüência natural do desenvolvimento histórico do
mundo antigo.
Por isso, o sentimento anti-escravagista está enraizado na tradição
judaica até os nossos dias. Desde a formação deste povo, os
postulados de justiça social são os elementos preponderantes na
cultura israelita.

(...)

Moisés, porém, não foi apenas um continuador e sim um
revolucionário renovador, que amoldou a doutrina religiosa às
condições sociais então existentes. Um exemplo semelhante nós
podemos encontrar, nos tempos modernos, em Marx. O que este foi
para o socialismo, aquele o foi para o monoteísmo, sendo apenas
necessário dizer, para a compreensão dessa semelhança, que tanto
um como o outro deram as necessárias formas definitivas às idéias
que, até eles, eram vagas e disformes.

Isaac Deutscher, O Judeu Não-Judeu

Tenho esperança, entretanto, que, juntamente
com as outras nações, os judeus – mesmo que
tardiamente – se tornem atentos e recobrem a
consciência da imperfeição de uma naçãoestado
e achem seu caminho de volta à
herança política e moral que o gênio dos
judeus, ultrapassando a as fronteiras do
judaísmo, nos legou: a mensagem da
emancipação universal do homem.

MARX, Karl. Apud: SÈVE, Lucien. Análises Marxistas da Alienação: Religião e Economia Política. Lisboa: Estampa, 1975, p. 66-67.

A unidade originária entre trabalhador e condições de trabalho
(abstraindo a relação esclavagista em que o próprio trabalhador
pertence às condições objetivas de trabalho) tem duas formas
principais: a comunidade asiática (comunismo natural) e a pequena
agricultura familiar (com a indústria doméstica a ele ligada) sob uma
forma ou outra. As duas formas são formas infantis e igualmente
pouco capazes de desenvolver o trabalho como trabalho social, e a
produtividade do trabalho social. Donde a necessidade da
separação, a ruptura, da oposição entre trabalho e propriedade (a
saber, a propriedade das condições de produção). A forma extrema
desta ruptura, onde ao mesmo tempo as forças produtivas do
trabalho social conhecem o seu maior desenvolvimento, é a forma do
capital. Só sobre a base material que ela cria e mediante as
revoluções pelas quais passam, no processo desta criação, a classe
operária e toda a sociedade pode ser reproduzida a unidade
original.

Quanto tempo

Canção anarquista em ídiche

Quanto tempo, oh, quanto tempo,
Você vai ficar escravizado
Comportando-se vergonhosamente algemado?


Quanto tempo você pode criar riquezas magníficas para aquele que rouba de seu pão? (2x)


Quanto tempo você vai ficar aleijado,
oprimido, sem-abrigo, na dor?


É madrugada já! Acordar! Abra seus olhos!Reconhece sua força de aço! (2x)


http://www.youtube.com/watch?v=Wbhrtoi9tr8

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Boca no Trombone: Direito à Verdade

O presidente da República assinou, em dezembro, o decreto que cria o Programa Nacional de Direitos Humanos. O Programa abrange um arco variado de questões, que vão do trabalho infantil e exploração sexual de crianças até a prática da tortura (tão comum em dependências policiais).

Gerou polêmica a proposta, incluída no PNDH, de criação de um grupo de trabalho para apresentar, até abril deste ano, projeto de lei propondo a criação da Comissão Nacional da Verdade. Esta Comissão teria poder para investigar violações de direitos humanos durante a ditadura civil-militar inaugurada com o golpe de 31 de março de 1964. É importante registrar, desde já, que eventuais punições caberiam exclusivamente ao Poder Judiciário.

Os ministros militares e o da Defesa criticaram a proposta, alegando que a Anistia promulgada em 1979 encerrava um capítulo na história do Brasil e apagava os crimes cometidos por agentes do Estado e pelos que se rebelaram contra a ditadura.

A América Latina foi varrida por ditaduras civis-militares entre as décadas de 1960 e 1980. Grupos de oposição sofreram perseguição implacável, que incluiu cassações de direitos políticos, prisões, tortura, assassinatos, exílios forçados. A violência não respeitou fronteiras nacionais. A Operação Condor, por exemplo, que reuniu militares de vários países, foi uma multinacional do terror de Estado, responsável por crimes hediondos.

Com o fim das ditaduras, em meados da década de 1980, os militares retornaram às casernas, mas nem sempre os crimes cometidos em nome da “Segurança Nacional” ficaram impunes. Apesar das tentativas de creditar à “obediência de ordens superiores” as barbaridades cometidas, em muitos casos os criminosos estão sendo julgados e punidos. Em outubro de 2009, a Justiça uruguaia condenou o ex-ditador Gregório Alvarez a 25 anos de prisão, por crimes contra a humanidade (homicídio qualificado de 37 rivais políticos). Na mesma época, foi condenado a 20 anos de prisão o ex-oficial da Marinha Juan Carlos Larcebeau, responsabilizado pela morte de 29 detidos pela ditadura. Na Argentina, onde se estima que 30 mil pessoas desapareceram por obra da repressão, a Justiça tem cumprido um papel honroso na punição dos ditadores e seus cúmplices. A presidente Cristina Kirchner acaba de determinar a abertura dos arquivos confidenciais referentes à atuação das Forças Armadas argentinas no período 1976-1983.

No Brasil, não é de hoje que se tenta bloquear o acesso aos arquivos dos aparelhos de repressão. Mais do que isso: uma espécie de solidariedade corporativa cria obstáculos para esconder todos os detalhes operacionais daqueles aparelhos e fazer com que permaneçam desaparecidos corpos de suas vítimas.

O artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição brasileira considera a prática da tortura crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. O Brasil é signatário da Convenção de San José, de 1969, que declara a tortura crime contra a humanidade. Assim sendo, quando agentes do Estado torturam prisioneiros que estão sob sua responsabilidade, cometem crime que não pode ser perdoado por qualquer lei deste país.

Na qualidade de democratas e em respeito a todos os que se insurgiram contra o regime ditatorial que nos asfixiou por mais de duas décadas, declaramos:

1. Total apoio à criação da Comissão Nacional da Verdade. Que ela tenha liberdade para trabalhar e que o resultado deste trabalho informe à Justiça e à sociedade brasileira a triste realidade das catacumbas da repressão.

2. Que se abram, de uma vez por todas, os arquivos dos aparelhos de repressão.

Como disse Cezar Britto, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil: “Um país que se acovarda diante de sua própria história não pode ser levado a sério”.

Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2010

ASA – Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação – Rio de Janeiro/RJ

ADAF – Associação David Frischman de Cultura e Recreação – Niterói/RJ

ICIB – Instituto Cultural Israelita Brasileiro – São Paulo/SP

Instituto Casa Grande - Rio de Janeiro/RJ

ICUF – Ídisher Cultur Farband - Federación de Entidades Culturales Judias de la Argentina

ACIZ – Asociación Cultural Israelita dr. Jaime Zhitlovsky – Uruguai

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Olhos verdes

Golçalves Dias



Eles verdes são:
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Camões, Rimas.

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte.
Diz uma - vida, outra - morte;
Uma - loucura, outra - amor.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,
Que pode também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do padro,
Mas verdes da cor do mar.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos da cor da esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que, ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

A origem do mênstruo

Bernardo Guimarães (1825-1884)


De uma fábula inédita de Ovídio, achada
nas escavações de Pompéia e vertida
em latim vulgar por Simão de Nuntua.

Stava Vênus gentil junto da fonte
fazendo o seu pentelho,
com todo o jeito, pra que não ferisse
das cricas o aparelho.

Tinha que dar o cu naquela noite
ao grande pai Anquises,
o qual, com ela, se não mente a fama,
passou dias felizes...

Rapava bem o cu, pois resolvia
na mente altas idéias:
- ia gerar naquela heróica foda
o grande e pio Enéias.

Mas a navalha tinha o fio rombo,
e a deusa, que gemia,
arrancava os pentelhos e, peidando,
caretas mil fazia!

Nesse entretanto, a ninfa Galatéia,
acaso ali passava,
e vendo a deusa assim tão agachada,
julgou que ela cagava...

Essa ninfeta travessa e petulante
era de gênio mau,
e por pregar um susto à mãe do Amor
atira-lhe um calhau...

Vênus se assusta. A Branca mão mimosa
se agita alvoroçada,
e no cono lhe prega (oh! caso horrendo!)
tremenda navalhada.

Da nacarada cona, em sutil fio,
corre pupúrea veia,
e nobre sangue do divino cono
as águas purpurcia...

(É fama que quem bebe dessas águas
jamais perde a tensão
e é capaz de foder noites e dias,
até no cu de um cão!)

- "Ora porra" - gritou a deusa irada,
e nisso o rosto volta...
E a ninfa, que conter-se não podia,
uma risada solta.

A travessa menina mal pensava
que, com tal brincadeira,
ia ferir a mais mimosa parte
da deusa regateira...

- "Estou perdida!" - trêmula murmura
a pobre Galatéia,
vendo o sangue correr do rósco cono
da poderosa déia...

Mas era tarde! A Cípria, furibunda,
por um momento a encara,
e, após instantes, com severo acento,
nesse clamor dispara:

"Vê! Que fizeste, desastrada ninfa,
que crime cometeste!
Que castigo há no céu, que punir possa
um crime como este?!

Assim, por mais de um mês inutilizas
o vaso das delícias...
E em que hei de gastar das longas noites
as horas tão propícias?

Ai! Um mês sem foder! Que atroz suplício...
Em mísero abandono,
que é que há de fazer, por tanto tempo,
este faminto cono?...

Ó Adonis! Ó Júpiter potentes!
E tu, mavorte invito!
E tu, Aquiles! Acudi de pronto
da minha dor ao grito!

Este vaso gentil que eu tencionava
tornar bem fresco e limpo
para recreio e divinal regalo
dos deuses do Alto Olimpo.

Vede seu triste estado, ó! Que esta vida
em sangue já se esvai-me!
Ó Deus, se desejais ter foda certa
vingai-vos e vingai-me!

Ó ninfa, o teu cono sempre atormente
perpétuas comichões,
e não aches quem jamais nele queira
vazar os seus colhões...

Em negra podridão imundos vermes
roam-te sempre a crica
e à vista dela sinta-se banzeira
a mais valente pica!

De eterno esquentamento flagelada,
verta fétidos jorros,
que causem tédio e nojo a todo mundo,
até mesmo aos cachorros!"

Ouviu-lhe estas palavras piedosas
do Olimpo o Grão-Tonante,
que em pívia ao sacana do Cupido
comia nesse instante...

Comovido no íntimo do peito,
das lástimas que ouviu,
manda ao menino que, de pronto, acuda
à puta que o pariu...

Ei-lo que, pronto, tange o veloz carro
de concha alabastrina,
que quatro aladas porras vão tirando
na esfera cristalina

Cupido que as conhece e as rédeas bate
da rápida quadriga,
co'a voz ora as alenta, ora co'a ponta
das setas as fustiga.

Já desce aos bosques onde a mãe, aflita,
em mísera agonia,
com seu sangue divino o verde musgo
de púrpura tingia...

No carro a toma e num momento chega
à olímpica morada,
onde a turba dos deuses, reunida,
a espera consternada!

Já Mercúrio de emplastros se a aparelha
para a venérea chaga,
feliz porque naquele curativo
espera certa a paga...

Vulcano, vendo o estado da consorte,
mil pragas vomitou...
Marte arranca um suspiro que as abóbadas
celestes abalou...

Sorriu o furto a ciumenta Juno,
lembrando o antigo pleito,
e Palas, orgulhosa lá consigo,
resmoneou: - "Bem-feito!"

Coube a Apolo lavar dos roxos lírios
o sangue que escorria,
e de tesão terrível assaltado,
conter-se mal podia!

Mas, enquanto se faz o curativo,
em seus divinos braços,
Jove sustém a filha, acalentando-a
com beijos e com abraços.

Depois, subindo ao trono luminoso,
com carrancudo aspeto,
e erguendo a voz troante, fundamenta
e lavra este DECRETO:

-"Suspende, ó filha, os lamentos justos
por tão atroz delito,
que no tremendo Livro do Destino
de há muito estava escrito.

Desse ultraje feroz será vingado
o teu divino cono,
e as imprecações que fulminaste
agora sanciono.

Mas, inda é pouco: - a todas as mulheres
estenda-se o castigo
para expiar o crime que esta infame
ousou para contigo...

Para punir tão bárbaro atentado,
toda humana crica,
de hoje em diante, lá de tempo em tempo,
escorra sangue em bica...

E por memória eterna chore sempre
o cono da mulher,
com lágrimas de sangue, o caso infando,
enquanto mundo houver..."

Amém! Amém! com voz atroadora
os deuses todos urram!
E os ecos das olímpicas abóbadas,
Amém! Amém! Sussurram...

O Elixir do pajé

Bernardo Guimarães (1825-1884)


Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Nessa postura merencória e triste
para trás tanto vergas o focinho,
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!

Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

Qual hidra furiosa, o colo alçando,
co'a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando
por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando o co'a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!

Um cabaço! Que era este o único esforço,
única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.

Quem extinguiu-te assim o entusiasmo?
Quem sepultou-te nesse vil marasmo?
Acaso pra teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pífias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a destra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?

Caralho sem tensão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
lingüiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.

Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.

Sus, ó caralho meu, não desanimes,
que ainda novos combates e vitórias
e mil brilhantes glórias
a ti reserva o fornicante Marte,
que tudo vencer pode co'engenho e arte.

Eis um santo elixir miraculoso
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.

Um pajé sem tesão, um nigromante
das matas de Goiás,
sentindo-se incapaz
de bem cumprir a lei do matrimônio,
foi ter com o demônio,
a lhe pedir conselho
para dar-lhe vigor ao aparelho,
que já de encarquilhado,
de velho e de cansado,
quase se lhe sumia entre o pentelho.
À meia-noite, à luz da lua nova,
co'os manitós falando em uma cova,
compôs esta triaga
de plantas cabalísticas colhidas,
por sua próprias mãos às escondidas.

Esse velho pajé de pica mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!

E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
de noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!

Se acaso ecoando
na mata sombria,
medonho se ouvia
o som do boré
dizendo: "Guerreiros,
ó vinde ligeiros,
que à guerra vos chama
feroz aimoré",
- assim respondia
o velho pajé,
brandindo o caralho,
batendo co'o pé:
- Mas neste trabalho,
dizei, minha gente,
quem é mais valente,
mais forte quem é?
Quem vibra o marzapo
com mais valentia?
Quem conas enfia
com tanta destreza?
Quem fura cabaços
com gentileza?"

E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea,
fodia o pajé.

Se a inúbia soando
por vales e outeiros,
à deusa sagrada
chamava os guerreiros,
de noite ou de dia,
ninguém jamais via
o velho pajé,
que sempre fodia
na taba na brenha,
no macho ou na fêmea,
deitando ou de pé,
e o duro marzapo,
que sempre fodia,
qual rijo tacape
a nada cedia!

Vassouras terrível
dos cus indianos,
por anos e anos,
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou...

Feliz caralho meu, exulta, exulta!
Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos te prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

Sus, caralho! Este elixir
ao combate hoje tem chama
e de novo ardor te inflama
para as campanhas do amor!
Não mais ficará à-toa,
nesta indolência tamanha,
criando teias de aranha,
cobrindo-te de bolor...


Este elixir milagroso,
o maior mimo na terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão...
Do macróbio centenário
ao esquecido mazarpo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
põe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode em cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço...

Eu te adoro, água divina,
santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego a minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!



sábado, 9 de janeiro de 2010

MÁSCARAS DE PORTO ALEGRE:

UM ITINERÁRIO DA BUSCA DE UMA SIGNIFICAÇÃO

Airan Milititsky Aguiar*
Desde fins de 2000 busco uma significação para as máscaras presentes em prédios e monumentos de Porto Alegre dentro do corte temporal 1900-1930. O trabalho poderia ter dois momentos distintos, mas formando um todo orgânico: a produção e o consumo dessa forma simbólica.
Enfatizo o consumo, ou melhor, a tradução, no sentido da apreciação. A esfera da produção não possui menor validade de pesquisa. Há, porém, uma lacuna das fontes. Poucos são os registros que indicam, com certeza suficiente, quais artistas confeccionaram tais objetos. Portanto, abordar as lutas internas da esfera da produção torna-se praticamente impossível.
Sempre almejei “fazer a história vista de baixo”, não pretendo, portanto, que este trabalho constitua instância legitimadora das máscaras enquanto obras de arte, mas sim buscar significações possíveis para elas dentro das visões de mundo da época. Tarefa árdua. Que fazer? Inicialmente, utilizei o recurso de registrar a impressão causada à primeira vista. Sentia-me fitado. A partir de tal, aliado à descrição da Gorgona - entidade mitológica grega manifestada e portadora da máscara - criei uma hipótese provisória da máscara enquanto vigilância. Parti então para uma análise espacial: para onde se destinava o emprego das máscaras?


Mascara em fechamento de arco. PortÃo principal Delegacia Fsical/MARGS

O caso emblemático: o antigo prédio da Delegacia Fiscal, atual Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Ao aproximar-se da porta de entrada, duas pequenas máscaras, justamente à altura dos olhos, fitam o observador. Acima, no fechamento do arco da porta, encontra-se outra máscara embaixo de uma alegoria representando o comércio e a agricultura . Desnecessário continuar a descrever: elas sempre fitam quem lhes fita! Inclusive com angulações para dar tal efeito. Tal particularidade sugeriu a idéia de “panóptico”, de “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”. As máscaras esquadrinham no espaço com seu olhar o nosso.
Busquei na literatura da época alguma referência a relações de olhar. O titulo me levou “As Máscaras”, de Menotti del Picchia. Trata-se de um certo triângulo amoroso, o jogo de olhares é, na trama, fundamental. Um exemplo:

...
Era tal a expressão do seu olhar profundo,
que não póde existir outro igual neste mundo!
(...)
Tão vivos que, Arlequim, desvairado, os suppuz
duas boccas de treva a erguer brados de luz!
Tripudiavam o bem e o mal nos seus refolhos.

O bem e o mal, o bonito e o feio, o velho e o moço, o bizarro e o convencional, o bestial e o celeste. Como as máscaras do teatro grego, destinadas a cobrir a face de quem a portava, eram duas: a da tragédia e a da comédia. As máscaras em geral em prédios públicos assim se apresentam, em oposições. Tem “a cara lavada” muitas vezes. Quem sabe, um refolho de sua presença a procurar a dos outros e sem dar sentença faz o outro dar a si próprio! Máscara: o espelho de quem a vê.
Esta é uma significação possível, mas como se articula em prática torna-se um novo problema de pesquisa, já dizia Pascal: “A última coisa que se encontra ao fazer uma obra é a compreensão do que se deve colocar em primeiro lugar”. Reflete sobre isso Lucien Goldman: “... o estudo de um problema nunca esta acabado, nem em seu conjunto nem em seus elementos. O pensamento uma operação viva, cujo progresso é real sem ser, entretanto , linear e, sobretudo, sem nunca estar acabado”.

sílfides se desfazem ao vento

Quando se anda na busca de encontrar o sentido,
que na busca por ele existe.
Busca de sentido de uma busca,
do encontro com uma direção a seguir,
da justificativa de ser.
Ser apenas é fácil quando se parece ser,
sentido fácil que não é próprio, mas vem dos outros
Se algo represento é para ser esquecido
Não a mim mas a imagem
A imagem pouco diz
Diz menos talvez que faróis na neblina -
se fosse como luz seria belo -
sílfides se desfazem ao vento
E por mais que possa ser tratado como objeto
Não seja este tratado como não identificado
Talvez identificado bem: como as evidencias o proporcionaram.

Sobre o Judaismo Progressista:

um ensaio de afinidade eletiva

Airan Milititsky Aguiar*



O presente ensaio visa sistematizar parte de pesquisas realizadas sobre uma clivagem política, pouco conhecida, no Judaísmo: o Judaísmo Progressista. Tal campo foi institucionalizado com a criação de uma rede internacional de entidades culturais judaicas: o IKUF. O Idisher Kultur Farband (Federação Cultural Judaica) foi criado na esteira da estratégia de Frentes Populares, estipulada pelo VII Congresso do Komintern (Internacional Comunista ou Terceira Internacional), na luta antifascista que iniciara na Guerra Civil Espanhola. Sua idealização ocorreu junto ao Congresso dos Escritores Antifascistas, realizado em Paris, em 1937. Esta rede teve varias secções no Brasil, entre elas o Clube de Cultura em Porto Alegre, cuja trajetória é meu objeto de pesquisa.
Para analisar esta trajetória, é fundamental a compreensão do Judaísmo Progressista. No transcorrer da pesquisa foram constatados alguns paralelos entre o judaísmo e as ideologias de esquerda, a partir de alguns indícios do que se chamou idichismo. Esses paralelos ganharam um aporte teórico a partir do conceito weberiano de afinidade eletiva, extraído dos estudos de Michel Löwy sobre romantismo e messianismo judaico.
Afinidade eletiva é entendida como “um tipo particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais, não redutível `determinação causal direta ou à “influencia” no sentido tradicional. Trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão.”
Pretende-se, portanto, analisar a afinidade eletiva entre certo messianismo judaico e ideologias de esquerda em uma figura nova: o Judaísmo Progressista. Extrapolando as hipóteses de Löwy, busca-se estabelecer o campo no qual decorreram as práticas do Clube de Cultura e seus atores até meados dos anos 60 do século passado.

Sobre o messianismo judaico
Trabalhando a partir dos conceitos cabalísticos de Tikun e Galut, construiremos os elementos do messianismo judaico que, plenamente arraigados desde o século XVI, constituem um substrato do judaísmo contemporâneo.
O Tikun, literalmente restauração, é o centro do misticismo de Isaac Luria, cabalista judeu nascido em Jerusalém no ano de 1534 e falecido em Safed por volta de 1572. Segundo Gershon Scholem, o pensamento de Luria e sua escola “foi o ultimo movimento do judaísmo, cuja influência veio a ser preponderante em todos os setores do povo judeu em cada país da diáspora, sem exceção”.
A teoria do Tikun pode ser sintetizada como a reconstituição da harmonia quebrada, no plano humano, com a queda de Adão ao comer o fruto da arvore do conhecimento. A partir dessa queda, o povo judeu foi obrigado a viver em estágios transmigratórios. A vida nesses estágios é chamada de Galut, literalmente exílio, mas no sistema lurianico, conforme Scholem, adquire um novo significado:
Anteriormente fora considerado [o galut] (...) quer um castigo pelos pecados de Israel, quer uma provação para fé de Israel. Agora ainda é tudo isso, mas intrinsecamente é uma missão: seu propósito é o de reerguer as centelhas caídas de todas as suas variadas localizações. “E este é o segredo por que Israel está fadado a ser escravizado por todos os gentios do mundo: a fim de que possa elevar aquelas centelhas que também caíram entre eles... E por isso era necessário que Israel se espalhasse pelos quatro ventos a fim de levantar tudo”
Para realizar o Tikun, cabe ao homem reordenar essas centelhas e restaurar a harmonia original destituindo a mácula. Segundo Scholem, o homem é parte ativa do processo, pois Deus não pode realizar por seus próprios meios esta “tarefa”. O Tikun acontece, portanto, na vida pública, é um acontecimento visível:
O messianismo judeu é, em sua origem e em sua natureza – nunca é demais insistir nisso -, uma teoria da catástrofe. Essa teoria insiste no elemento revolucionário, cataclísmico, na transição do presente histórico ao futuro messiânico.

O messianismo judaico e ideologias de esquerda no Judaísmo Progressista
Em 1958 o IKUF encaminha as pré-teses para seu congresso ao Clube de Cultura, onde postula:
A parcela consciente da população judaica do Brasil deve combater as manifestações reacionárias que fazem com que a juventude judaica ignore as necessidades do país e encaminham a juventude em direções que não coincidem com os interesses de amplas massas brasileiras com as quais a população judaica está estreitamente ligada. Pelo contrário, atendem aos interesses das camadas privilegiadas que por natureza se inclinam para todas teorias ant-populares [sic] tais como: facismo [sic], racismo, anti-semitismo, que ameaçam a própria existência da coletividade judaica.
Nesta tese encontramos a vinculação do Judaísmo Progressista na estratégia estipulada pelo movimento comunista internacional. A mácula a ser combatida são as camadas privilegiadas e suas pretensas ideologias discriminatórias, que não afetam somente a comunidade judaica mas, também, amplas massas brasileiras. Neste trecho, é notável a linha do Partido Comunista Brasileiro, que nesta época dirigia o IKUF no Brasil, da etapa democrático-burguesa da revolução brasileira, mantendo a perspectiva nacional-libertadora da formulação por Astrogildo Pereira e Octavio Brandão.
Em agosto de 2006 houve um encontro das instituições culturais judaico progressistas em Montevidéu no Uruguai. Em sua declaração final encontra-se:

1. Nuestra identidad como judíos progresistas se encuentra ligada a una concepción humanista y laica que implica pensar, actuar, vivir con una serie de principios bajo reglas humanistas, solidarias de justicia social, respeto a los derechos del otro, tolerancia, y aceptación de las diferencias concebidas desde el principio de nuestra historia milenaria.
2. La identidad judía así concebida lejos de tener un carácter exclusivista es fruto de la integración con las sociedades en las cuales vivimos y que pretendemos vivan nuestras futuras generaciones.
Nos pronunciamos por la Multi-centralidad de la vida judía. Esto significa que las colectividades establecidas a lo largo y ancho del planeta tienen el derecho y el deber de hablar por si mismas, decidir y fomentar sus formas institucionales y de desarrollo cultural especificas en armonía con las realidades, necesidades y sueños de los pueblos de los cuales son parte (grifos meus)

Nota-se, sobretudo nas partes grifadas, uma extrema homologia com a concepção de Galut. Os Judeus da diáspora, nesse entendimento, devem agir em suas especificidades atuando para obter justiça social, tsedaká. Tal ênfase, numa re-harmonização, é corroborada pela seguinte passagem das mesas de trabalho do encontro:

Un Argentino/Brasilero/Uruguayo Judeo progresista hoy se define como:
Judeo Argentino/Brasilero/Uruguayo progresista porque sus orígenes reconocen una doble raigambre: la argentina/brasilera/uruguaya y la judía. De allí su compromiso y accionar. Reivindicando como suyo tanto el patrimonio socio-cultural del pueblo judío (construido creativamente a través de las sucesivas generaciones), como las más genuinas tradiciones populares y nacionales de nuestro suelo, en un fecundo enraizamiento.
Progresista por sostener que las respuestas a las demandas de la actualidad no se resuelven de manera individual, sino desde una concepción solidara, fraterna y colectiva. Proponiendo el crecimiento y desarrollo de los individuos sobre los que influencia, con el objeto de lograr de estos una actitud crítica y transformadora de la realidad que les toca vivir. Junto a las luchas populares y democráticas del pueblo argentino/brasilero/uruguayo por un mundo más justo, digno de ser habitado por todos, con las mismas condiciones y posibilidades.
Laico, en tanto prescinde de toda connotación religiosa en sus acciones y no acepta toda intromisión de la religión en el gobierno y la educación publica, respetando toda adhesión personal a cualquier religión.
Humanista por que nos interesa la realización total de la vida humana, asegurando su dignidad, su bienestar y su desarrollo.
Antifascista por su lucha contra cualquier forma de intolerancia, autoritarismo, militarismo o expresiones genocidas del poder o gobiernos que amenacen la paz y la seguridad de los pueblos, así como su convicción de la necesidad de construir sociedades sustentadas en la democracia y la igualdad de todos los seres humanos.
Antirracista (antidiscriminatorio) por estar contra todo tipo de discriminación (religiosa, social, cultural, étnica, de genero, etaria), y fundamentalmente contra el antisemitismo.
Judíos argentinos/brasilero/uruguayo por sus precedentes históricos, por lazos familiares, por sus tradiciones, acervo cultural, decisión personal y por que nada de lo atinente a la colectividad judía y a la vida nacional le es ajeno e indiferente.
El judío progresista frente a este siglo XXI debe ser un militante por estos objetivos, pero no deben ser aplicados mecánicamente sino, de acuerdo a una concepción dinámica de la historia, adaptándolos a una determinada realidad social del país. La tarea de ganar a la colectividad para las causas democráticas, no establece prioridades. La realidad objetiva genera un proceso dialéctico en el que lo especifico y lo general (o sea la colectividad y lo nacional (se influyen reciproca y simultáneamente. Los cambios que se producen en el proceso político del país, van precisando nuestras posiciones.(grifos meus)

Nesta passagem está elaborada a fusão das duas configurações distintas, o messianismo, em seus aspectos de Tikun e Galut, a vida nas diásporas recolhendo as centelhas dispersas entre elas na busca de uma re-harmonização do todo social, a destituição da mácula, com a utopia revolucionária, sobretudo na perspectiva da máxima marxiana “de cada um conforme as suas possibilidades a cada um conforme as suas necessidades”.
Estabelecendo o homem como um agente da história, nas condições postas por Marx em “18 de Brumario”, existe uma inegável correspondência entre as duas configurações. Essas correspondências historicamente foram ativadas, postas em uma relação dinâmica, nas conjunturas do final do século XIX e início do XX, primeiramente no processo revolucionário soviético, quando inúmeros judeus se somam à luta anticzarista buscando a sua emancipação juntamente a emancipação proletária, e posteriormente na luta antifascista a partir da Guerra Civil Espanhola.
Ainda as mesas de trabalho do Congresso de Montevidéu colocam:
Nosotros creemos en el pluricentralismo y en la autonomía de cada comunidad, para determinar su propio destino sobre la base de sus propios intereses, con sus rasgos y grados de evolución, interconectados por razones históricas, ancestrales, culturales y tradicionales. Como parte del pueblo judío y como contribución a su propio desarrollo comunitario, fomenta el conocimiento y las relaciones intercomunitarias.- Nuestro meridiano político pasa por nuestro país, en la inteligencia de que no hay “cuestión judía” que surja al margen de la vida nacional y que pueda ser resuelto independientemente de la solución de los problemas nacionales.
(...)
Pero creemos que vale la pena transitar con todos los más posibles el camino de la creación de una contracultura de la resistencia a un modelo político y a un sistema socioeconómico que se oponen al humanismo, la justicia y la paz.
Desde fins da segunda guerra o judaísmo progressista se direciona entorno do projeto amplo de Paz. Essa paz, especialmente entendida nos desdobramentos da questão palestina, os progressistas demandam a pluricentralidade da vida judaica, Galut e postulam a divisa dois povos, dois estados, visa a emancipação do povo judeu conjuntamente com a emancipação da humanidade. Como a metáfora marxiana de fim do reino da necessidade e inicio do reino da liberdade, a cabala lurianica postula a passagem do Olam Ha-Tohu, mundo do caos, para o Olam Ha-Tikun, reino da harmonia: o fim da pré história da sociedade humana. Nota-se novamente a homologia entre a concepção messiânica, a tarefa do povo judeu, e a perspectiva revolucionaria em Marx, e a tarefa do proletariado.

Considerações finais
Não se pretendeu fazer um estudo exaustivo da afinidade eletiva entre messianismo judaico e utopias revolucionárias no judaísmo progressista, mas sim elaborar uma sistematização de alguns resultados de pesquisas realizadas com esse intento.
A documentação do Congresso de Montevidéu possibilita ir muito além do que foi exposto e trabalhado acima. No entanto buscou-se delinear as linhas mestras de futuros trabalhos a partir de temas centrais elaborados a partir da perspectiva de Michel Löwy.
A documentação ddo Clube de Cultura encontra-se esparsa e sob muitos aspectos incompleta, ainda em fase de catalogação e arquivamento. Dos antigos militantes em Porto Alegre, a maioria já faleceu e o Clube de Cultura rompeu com o IKUF em 1962.
Na tentativa de elaborar um modelo que possibilite analisar a trajetória da entidade na primeira conjuntura, nos anos 50, da hegemonia do ídiche e do Judaísmo Progressista, o trabalho com a documentação advinda do Congresso de Montevidéo é de suma importância. Ela possibilita elaborar um quadro que aproxima a reconstituição tanto do leque de possibilidades quanto do habitus dos atores em Porto Alegre. Dessa maneira, dando elementos fundamentais para a pesquisa sobre a trajetória da entidade.

BENJAMIN E A QUESTÃO JUDAICA:

um estudo a partir da correspondência com Gershon Scholem


Airan Milititsky Aguiar*


Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin


À Guisa de Introdução


Qual inimigo poderia haver para perspectivas tão distintas sobre o destino dos judeus, como as apresentadas na correspondência entre Walter Benjamin e Gershom Scholem? Qual não poderia ser que não fosse o famigerado anti-semitismo, em especial na Alemanha, da qual ambos “eram filhos”?
Bastante curioso que hoje, novamente, esse inimigo volta a mostrar desveladamente suas faces, às vezes em vestes tão antigas como as apresentadas nos Protocolos dos Sábios de Sião. Parece que o “prognóstico”, sábio bom senso, apresentado por Hannah Arendt (2004, p. 156) se confirma:
Na verdade, resulta muito difícil saber que interesses nacionais, ou imperialistas, pode ter a Inglaterra no Oriente Próximo; pelo contrario, não é nada difícil predizer que, até que não se produza o advento do Messias, qualquer aliança entre um lobo e um cordeiro somente pode ter conseqüências devastadoras para este último.
O debate referente à Questão Judaica no inicio do século XX é profundamente multifacetado e denso, no entanto pode ser definido provisória e esquematicamente na oposição entre assimilacionistas e sionistas. O sionismo, nacionalismo judaico, foi criado no final do século XIX , tendo como expoente o intelectual Theodor Herzl, numa tentativa de, ao criar um lar pátrio – um Estado judeu – superar a Questão Judaica. Um de seus precursores foi Moses Hess, interlocutor e colaborador de Marx e Engels, ao publicar a obra “Roma e Jerusalém” em 1844. Grande parte da literatura aponta para o caráter minoritário, dentro do povo judaico, deste posicionamento até a segunda Guerra Mundial. O chamado assimilacionismo tinha como estratégia a integração do povo judeu nas comunidades em que viviam, há séculos, na diáspora. Acusados pelos sionistas de desejarem o “suicídio do judaísmo”, na realidade nunca pretenderam uma assimilação total. Este posicionamento tinha como horizonte de ação, sobretudo, o respeito pela diferença. Esta clivagem no seio da judiaria, hoje em dia, é bastante desconhecida.
Com o advento da criação do Estado de Israel, em 1948, surgem argumentos perpetrados através do Aparelho de Estado e suas agências como o Israel Information Center (1983, [n.i.]), que afirma: “Judeus sempre foram sionistas no sentido de que a restauração do povo judeu no seu lar pátrio, é um dos princípios básicos do judaísmo” Pode-se questionar esse tipo de informação hegemônica, através de uma simples historicização dos conceitos de pátria, sionismo, povo etc. No entanto tal análise foge do escopo deste trabalho.
Com intuito de demonstrar que a construção do Estado de Israel não foi [e nem é] um consenso entre os judeus como forma de emancipação ou superação da Questão Judaica, pretende-se analisar principalmente a correspondência – entre dois grande intelectuais judeus – Walter Benjamin e Gershom Scholem, bem como as memórias deste sobre esta amizade, no que diz respeito exclusivamente a essa dimensão. Adverte-se desde já que, no entanto, em diversas ocasiões essa perspectiva está submersa em discussões relativas à própria sobrevivência de Benjamin e sua possível ida, a passeio ou definitivamente, à Palestina.
A correspondência analisada, corpus principal deste trabalho, é composta de 128 cartas. De Benjamin a Scholem, referentes à sua situação durante a tomada de Poder por Hitler, datadas entre 25 de junho de 1932 e 28 de fevereiro de 1933, são 11 cartas. O resto do conjunto é formado por 65 cartas e postais de Benjamin, 55 de Scholem a Benjamin, bem como uma da ex-esposa de Benjamin, Dora, a Scholem, datadas de março de 1933 a fevereiro de 1940. Essa classificação foi feita por Scholem (1993, p.13) para fins de edição em ordem cronológica.


Da Correspondência


Walter Benjamin dispensa apresentações, filósofo e crítico de arte conhecido e reconhecido pelo seu trabalho. Já Gershom Scholem é um personagem pouco conhecido no Brasil, mas muito importante. Sua obra é fundamentalmente um estudo sobre o misticismo judaico. Torna-se um dos principais estudiosos da Cabala no século XX, ao ser o primeiro catedrático de História da Cabala da Universidade de Jerusalém. Realiza um longo trabalho de consulta a manuscritos originais dos mais diversos místicos da história do judaísmo, estudo que é sistematizado na sua obra magna “As grandes correntes da mística judaica”. Amigo de Benjamin dos tempos de faculdade torna-se um de seus principais interlocutores, pessoa de confiança para assuntos de foro íntimo – interessante, sobretudo, dado o caráter bastante reservado de Benjamin.
A correspondência entre estes intelectuais é muito rica, contendo desde assuntos pessoais como a segurança de ambos, de suas famílias e amigos até trocas intelectuais do mais alto nível. Scholem é um dos principais interlocutores de Benjamin no que se refere a temas judaicos bem como a filosofia em geral, o que é comprovado pelo testamento de Benjamin no qual dá a Scholem os direitos sobre todos os seus manuscritos (SCHOLEM 1989, p.185-186). O que parece ser uma constante em missivistas a troca de favores é recorrente, algo que pode ser encarado como uma economia do Dom, própria da literatura epistolar.
A documentação principal do presente trabalho possui uma história bastante interessante. Scholem acreditava não ser possível reunir novamente a correspondência trocada com seu amigo. Em 1966, 26 anos após a morte de Benjamin, Scholem toma ciência da existência de um fundo no Arquivo Central de Potsdam que continha suas cartas enviadas a Benjamin, entre outros documentos. Isso torna possível reconstituir a série de missivas ë naquele ano que, pela primeira vez depois da morte do amigo, pôde consultar o arquivo desse espólio aprendido pela Gestapo e arquivado na Alemanha Oriental, o que desde 1945 tinha dado como perdido e impossível de encontrar. Teve acesso a fotocópias apenas em 1977 quando completara 80 anos, nas suas palavras “meu mais valioso presente nesse aniversario” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 12-13).
Ao que indica a correspondência analisada, ambos possuíam uma forte ligação com este tipo de literatura. Scholem publicou mais de uma vez suas cartas com Benjamin, bem como suas memórias dessa amizade. Por sua vez Benjamin havia publicado no jornal Frankfurter Zeitung entre 1931-32 uma coletânea de missivas comentadas de vários autores sob o nome “O Povo Alemão”, cujo subtítulo é “romantismo e burguesia em cem anos de literatura epistolar” o que parece ser um trabalho pioneiro no campo do que vem sendo chamado de “Escritas de Si” ou “Escritas do Eu”. Ademais, existem inúmeras referências a cartas de diversos autores na correspondência entre eles.
Ao contar a história de sua amizade com Benjamin, Scholem (1989, p. 14) relembra:
Visitei-o pela primeira vez em 31 de julho de 1915. (...). Ocupava-se com a essência do processo histórico e tinha suas idéias sobre a filosofia da história. Por isso, interessou-lhe o que eu dissera e pediu-me que lhe explicasse o que pretendia com minhas palavras contra Hiller. Assim, logo chegamos a falar de coisas que então me atraiam em especial, ou seja, sionismo e socialismo.
Indicando, portanto, que um dos principais pontos de afinidade e aproximação entre eles foi a discussão referente ao futuro dos judeus, passando pelas perspectivas do sionismo e do socialismo, em suas mais diversas matizes.
Ainda nestas memórias Sholem (1989, p. 29) recorda:
Escrevi então em meu diário: “Quando refletimos por muito tempo sobre certos assuntos, é possível surgir uma afinidade com uma companhia tão frutífera, inspiradora e irreverente. De tais assuntos não posso falar com Brauer [meu amigo de infância], nem com outros; não posso falar com os sionistas sobre meus interesses sionistas, de fato um assunto deprimente de ambas as partes... Tenho de dirigir-me ao não-sionista e não-matemático Benjamin, que tem sensibilidade onde a maioria dos outros não reagem mais”.
Embora no corpus documental, composto pelas cartas, essa discussão apareça expressamente – em formulações especificas – poucas vezes, o debate referente a Questão Judaica permeia esta correspondência. Ainda que seja impossível classificá-los em algum lugar consagrado no espectro político, ambos se posicionavam à “esquerda”, todavia Scholem era um sionista , porém não marxista, ao passo que Benjamin reivindicava essa posição.
Nesta discussão, sobre a posição de ambos, inúmeras cartas se prestam para se pensar em que lugar Benjamin se encontrava, sobretudo a partir das discussões sobre suas produções intelectuais. Referente a posição de Benjamin, Scholem questiona:
O ensaio para a Zeitschrift für Sozial Forschung não consegui entender até o momento. Seria uma profissão de fé comunista? Caso contrario, o que é afinal? Devo confessar-lhe que este ano realmente não sei onde você se situa. Apesar de todas as tentativas das quais você deve lembrar, nunca consegui que me esclarecesse sua posição. (BENJAMIN; SCHOLEM, p. 154)
Refere-se nessa carta, de 19 de abril de 1934, ao artigo sob encomenda a Benjamin intitulado “A posição do escritor francês na atual sociedade”. O próprio Benjamin advertiu, em sua carta de 19 de abril de 1933, a Scholem que este ensaio “representa uma impostura, pela circunstância de ter de escrevê-lo aqui [Ibiza], quase sem literatura de consulta, ele adquire uma face até mágica ...”(BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 66)
Em sua resposta a Scholem, em 6 de maio de 1934, Benjamin não deixa clara sua posição, mas adverte sobre qual ela não seria, a saber:
Que novidade poderia traze-lhe? Que meu comunismo, entre todas as formas possíveis e tipos de expressão, jamais assumiu a de um credo? Que ele, as custas de sua ortodoxia, não é mais do que a expressão de certas experiências que fiz em minha vida e em meu pensamento; que é uma expressão drástica, mas não infrutífera, da impossibilidade atual de uma produção cientifica, impossibilidade de oferecer um espaço ao meu pensamento e à minha existência, diante da atual forma econômica; que ele representa a única tentativa racional para alguém quase completamente privado dos meios de produção, de proclamar direitos a isso em seu pensamento bem como em sua vida ... ...”(BENJAMIN; SCHOLEM, 1993,p. 158-159)
No entanto, um trecho, bem compreendido por Scholem, revela uma dimensão fundamental do posicionamento de Benjamin. Embora inserido no contexto de umas das discussões sobre uma possível permanência de Benjamin na Palestina, revela um leito profundo desse posicionamento.
Acho que poderia pairar uma certa ambigüidade sobre minha aparição por essas novas orlas. Milhares de intelectuais têm chegado aí. Uma coisa me distingue dos demais; e isto só à primeira vista representa um ponto a meu favor. Mas então – como você sabe muito bem – a vantagem é deles. Esta: a de serem folha em branco. Nada teria sobre mim um efeito tão funesto como adotar uma posição a ser entendida da seguinte maneira: aproveitar-se de uma calamidade pública para encobrir uma particular. Ë preciso fazer essas ponderações, pois não tenho nada e me prendo a muito pouco. Diante dessas circunstâncias, convém evitar qualquer situação equívoca, porque poderia ter conseqüências excessivamente graves. Irei à Palestina de boa vontade e plena disposição se você, ou aqueles que vêm ao caso alem da sua pessoa, estiver convencido de que isso é possível sem levar a tal situação. E me parece que a mesma condição pode ser formulada na seguinte pergunta: há ali para mim – para aquilo que sei e que sou capaz - maior margem de ação ou espaço do que na Europa? Porque se não for maior, então será menor. Esta frase dispensa explicações. E esta ultima, idem: que não faltará determinação de minha parte, se ali puder aumentar meu saber e a minha capacidade, sem abrir mão do que já foi adquirido. (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 90-91)
Esta carta a Scholem de 16 de junho de 1933, revela uma dimensão ética do comunismo de Benjamin. Tal dimensão surge a partir da expressão de não ser “uma folha em branco”. Benjamin coloca seu comunismo homólogo ao radicalismo ético exposto por Marx ([198-1] p. 214-215) na “Crítica ao programa de Gotha”
Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. ...”
Benjamin, ao que indica, tinha como horizonte a ruptura do “Reino da Necessidade” para o “Reino da Liberdade”, o que dá o lugar tanto de sua posição político-ideológica, quanto de sua posição sobre “Israel” e a Redenção. Nesse sentido, a solução da Questão Judaica está, para Benjamin, envolvida num processo de emancipação de toda a humanidade. “Israel” em Benjamin tem uma conotação espiritual, o que pode ser evidenciado sobretudo em suas “Teses sobre o conceito de história” numa dimensão teológico-messiânica. Nesse aspecto, Scholem é seu interlocutor pois possuía grandes conhecimentos de mística, história e filosofia judaica um dos temas recorrentes em suas discussões filosóficas, por exemplo, no que concerne a interpretação da obra de Kafka.
Todavia, é impossível afirmar que Scholem não compreendera a carta de Benjamin, pois fora militante vinculado ao grupo de Rosa Luxemburgo e seu irmão mais velho, deputado no Reichstag (Parlamento Alemão) pelo Partido Comunista. É justamente a associação dessa dimensão ético-política a uma dimensão messiânico-religiosa que parece não estar ainda bem trabalhada, à época, na consciência de Scholem sobre o posicionamento de seu amigo. Scholem parece ter uma repulsa ao marxismo e as interpretações realizadas “a luz da luta de classes” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 198). A compreensão é evidente em sua coerente resposta a Benjamin.
Aliás, você está equivocado se pensa que milhares de intelectuais já vieram a Palestina. Não é nada disso! Os imigrantes vêm de outras camadas muito diferentes, entre eles há muita juventude, muitos comerciantes, muito ortodoxia. E os intelectuais além da esfera dos médicos, juristas e professores, só estão essencialmente representados pela figura, um tanto difícil, Gustav Steinschneider, e mesmo a permanência deste no país não deve se prolongar muito, a meu modo de ver. (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 97)
Esse comunismo radical, fundamentalmente ético de Benjamin, apresenta um paradoxo apontado por Scholem em suas memórias sobre esta amizade.
Para mim as idéias de Benjamin possuíam uma aura moral irradiante; na medida em que eu podia penetrar nelas intelectualmente, tinham uma moralidade própria, ligada a sua relação com a esfera religiosa que então estava clara e abertamente no ponto de fuga de seus pensamentos. Em contrapartida, na relação de Benjamin com a vida cotidiana, havia um elemento estritamente amoral, com o qual não pude conformar-me, embora ele o justificasse com seu desprezo pelo mundo burguês. (SCHOLEM, 1989, p. 62)
Neste trecho das memórias sobre sua amizade, Scholem lembra das discussões que tiverem em maio de 1918 junto a Benjamin e Dora, então esposa de seu amigo, em Berna, onde estes residiam. Benjamin tinha noção desse paradoxo quando escreve a Scholem em 6 de maio de 1934, que “raras vezes, (...), tentei expressar o conjunto contraditório do qual emergem minhas convicções em cada uma de suas manifestações”( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 158). Ele consciente se auto-imagina na face de Janus. Esse conjunto contraditório é analisado por Löwy, que aponta para a parcialidade dos estudos onde “críticos ou adeptos preferiram não olhar senão uma das faces, ignorando a outra” (1989, p. 108). Essa dimensão religiosa, ao qual Scholem refere estar o ponto de fuga dos pensamentos de seu amigo é, até o final da vida deste, um ponto marcante e indispensável para a compreensão de suas posições.
Nesta dimensão, Löwy (1989, p.85) analisa que Walter Benjamin “seria um dos raros autores nos quais a afinidade eletiva entre messianismo judaico e utopia libertária resultou numa verdadeira fusão, isto é, no nascimento de uma forma de pensamento nova, irredutível a seus componentes”. Relembrando que o deus romano Janus “tinha, com efeito, duas faces mas uma só cabeça, as “faces” de Benjamin são manifestações de um único e mesmo pensamento que apresentava simultaneamente uma expressão messiânica e uma secular” (LÖWY, 1989, 108). Ou seja, sua obra é perpassada por essa dimensão religiosa, e apenas a partir de sua compreensão e sua acomodação em seu pensamento que pode ser estabelecido o devido lugar de suas idéias, também, na sua correspondência, no que concerne a Questão Judaica.
Dentro desse espírito, é compreensível o que Scholem chama de “Correspondência da Primavera de 1931 sobre o Materialismo Histórico”. Nesta, em forma conclusiva, Scholem aponta que Benjamin estava “exposto ao perigo mais pelo desejo de comunidade, mesmo que seja a comunidade apocalíptica da revolução, do que pelo horror da solidão de que tanto falam suas cartas.”(1989, p. 230)
No entanto, ao que tudo indica este desejo de comunidade não tinha como horizonte de ação Israel [a Palestina], menos ainda sob a égide do sionismo. Ainda na discussão sobre a ida de Benjamin a Palestina, por volta de 1933, Scholem coloca um óbice a sua viagem.
Decisivo para sua vida aqui seria tão-somente a questão de saber se aqui você poderia aplicar seus conhecimentos e capacidades. Minha vida na Palestina só se tornou possível (...) porque me sinto comprometido com esta causa até o fim, mesmo que ela me leve ao abismo ou ao desespero, do contrário, uma mudança questionável pelo que representa sobretudo em matéria de perda do idioma e soberbia, já teria acabado comigo. Esta decisão não lhe seria poupada aqui, muito menos a uma pessoa de sua visão e experiência. ( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 100)
Ao que Benjamin responde:
Quando várias semanas atrás, você levantou pela primeira vez a questão de uma possível ida minha a Palestina, em nenhum momento considerei que a Palestina representasse apenas um lugar mais ou menos apropriado à minha permanência. Mas como na sua ultima carta você partiu do princípio que essa era minha concepção, para então revidá-la de forma suave mas determinada, não posso deixar de corrigi-lo. Não, em nenhum momento considerei uma solução dentro da margem do possível, que se concretizasse uma permanência sob a base de seguir mantendo a linha do meu trabalho. E simplesmente pelo fato de haver levantado a questão de minha ida a Palestina, creio reconhecer de sua parte uma disposição ousada – se bem que não necessariamente leviana – a de subordinar a questão de minha ligação com a causa do judaísmo à apreciação da experiência. (...). Mas nunca tive a menor dúvida de que esta questão – bem como qualquer outra essencial que tenhamos abordado – será decidida perante o “fórum” do hebraico, por mais que a circunstâncias tornem difícil para mim dizê-lo com palavras, que bem ou mal, pareçam gastas ou pouco convincentes. E se apesar disso o faço, é pelo menos na intenção de realçar este fórum frente a outros que poderiam ser cogitados. Pois é evidente que nenhum de nós dois se disporia a investigar o meu grau de “ligação com a causa do sionismo”, assim como ninguém faria uma coisa dessas em relação à forma de vida ortodoxa de Ernst David ou à crença em Deus de Käthe Ollendorf. O resultado poderia ser totalmente negativo. Mas não nego certas conexões. .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 106-107)
Sobre tais conexões pode-se afirmar que Benjamin deixa claro novamente quais não podiam ser na correspondência de 8 de abril de 1934, onde coloca um problema sobre a publicação de seus escritos por uma editora judaica.
Um outro passo, porém, deve estar no âmbito das suas possibilidades Wiesengrund [Adorno], me escreveu de Berlim que Erich Reiss manifestou um vivo interesse pela Infância Berlinense no Século XIX. O problema é que a editora ultimamente segue uma linha sionista. No que Wiesengrund, com razão vê certas dificuldades. Para superá-las haveria algumas perspectivas caso você pudesse lhes expor certas paginas judaicas do meu livro, digamos como um perito que dá seu parecer. .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 148)
Ao que Scholem responde “você superestima muito minha sabedoria, achando que eu poderia esclarecer e demonstrar ao editor ‘o lado judaico’ do seu livro, que até para mim é bastante obscuro.” .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 154)
Quais conexões são essas com o judaísmo, com a causa do judaísmo, ou com a superação da Questão Judaica? Torna-se evidente a tomada de posição de Benjamin que, como dito em sua juventude, sua filosofia seria uma filosofia do judaísmo (SHOLEM, 1989, p. 41). O trabalho de analisar a afinidade eletiva entre certo messianismo judaico e utopias libertárias em Walter Benjamin já foi realizada pelo sociólogo brasileiro radicado na França Michael Löwy. Em síntese Lowy aponta que Benjamin seria não
“apenas um crítico literário ou um renovador da estética marxista: o rasgo profundo de sua obra, ..., é uma nova concepção da história, que se encontra esboçada nos escritos dos outros pensadores messiânico-libertários mas atinge nele sua mais alta expressão filosófica.” (1989, p. 86)
Em caráter de exposição provisória pode-se apresentar a seguinte perspectiva do messianismo judaico, presente na visão de mundo de Benjamin, a partir dos estudos de Scholem, também utilizados por Löwy, sobre a História da Mística Judaica.
O Tikun, literalmente restauração, é o centro do misticismo de Isaac Luria, cabalista judeu nascido em Jerusalém no ano de 1534 e falecido em Safed por volta de 1572. Segundo Scholem, o pensamento de Luria e sua escola “foi o ultimo movimento do judaísmo, cuja influência veio a ser preponderante em todos os setores do povo judeu em cada país da diáspora, sem exceção” (SCHOLEM, 1995, p. 288).
A teoria do Tikun pode ser sintetizada como a reconstituição da harmonia quebrada, no plano humano, com a queda de Adão ao comer o fruto da árvore do conhecimento. A partir dessa queda, o povo judeu foi obrigado a viver em estágios transmigratórios. A vida nesses estágios é chamada de Galut, literalmente exílio, mas no sistema luriânico, conforme Scholem (1995, p. 286-287), adquire um novo significado:
Anteriormente fora considerado [o galut] (...) quer um castigo pelos pecados de Israel, quer uma provação para fé de Israel. Agora ainda é tudo isso, mas intrinsecamente é uma missão: seu propósito é o de reerguer as centelhas caídas de todas as suas variadas localizações. “E este é o segredo por que Israel está fadado a ser escravizado por todos os gentios do mundo: a fim de que possa elevar aquelas centelhas que também caíram entre eles... E por isso era necessário que Israel se espalhasse pelos quatro ventos a fim de levantar tudo”
Para realizar o Tikun, cabe ao homem reordenar essas centelhas e restaurar a harmonia original destituindo a mácula. Segundo Scholem, o homem é parte ativa do processo, pois Deus não pode realizar por seus próprios meios esta “tarefa”. O Tikun acontece, portanto, na vida pública, é um acontecimento visível:
O messianismo judeu é, em sua origem e em sua natureza – nunca é demais insistir nisso -, uma teoria da catástrofe. Essa teoria insiste no elemento revolucionário, cataclísmico, na transição do presente histórico ao futuro messiânico. (SHOLEM apud LÖWY, 1990, P.104)
Nesse sentido da obra de Benjamin concorda-se com Löwy (1989, 109) ao apontar que a
conseqüência profana do messianismo de seus últimos escritos é aumentar sua carga explosiva; contribui para conferir-lhes a qualidade subversiva única que faz das Teses sobre a filosofia da história um dos documentos mais radicais, inovadores e visionários do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach de Marx”


A Guisa de Conclusão


À respeito da identidade judaica de Benjamin, bem como suas posições referentes ao judaísmo, ao misticismo e a Questão Judaica parece ser justo destacar, a formulação de Isaac Deutscher:
Tenho esperança, entretanto, que, juntamente com as outras nações, os judeus – mesmo que tardiamente – se tornem atentos e recobrem a consciência da imperfeição de uma nação estado e achem seu caminho de volta a herança política e moral que o gênio dos judeus, ultrapassando a as fronteiras do judaísmo, nos legou: a mensagem da emancipação universal do homem.(1970, p. 40)
No que diz respeito a posição de Benjamin, Deutscher não precisava ter esperança, deveria ter respeito e admiração.
Neste breve trabalho, sobre a correspondência entre Benjamin e Scholem evidencia-se, no posicionamento daquele intelectual frente a Questão Judaica, uma grande clareza, sobretudo no que concerne ao futuro do Estado de Israel, no qual não via a menor “força vital” para superar o anti-semitismo do qual fora vitimado. O sionismo, apesar de sua lucidez “frente ao futuro dos judeus”, demonstrou-se insuficiente para o cumprimento de seus objetivos mediatos, já que os imediatos – a construção de um Estado – foram realizados. Hoje padece no paradoxo de ser apontado como um nazismo judaico frente à Questão Palestina. Cabe lembrar, a também amiga de Benjamin, Hannah Arendt (2004, p.147) ao afirmar que “as discussões absurdas entre sionistas e assimilacionistas não fizeram senão ocultar a evidencia de que, em certo sentido, os sionistas foram os únicos que quiseram seriamente a assimilação, isto é, a ‘normalização’ do povo judeu (...), enquanto que o desejo dos assimilacionistas foi que o povo judeu preservasse sua especificidade”. Ainda adverte que o sonho de Herzl era “transplantar o ‘povo sem território’ ao ‘território sem povo’.” Sabe-se bem o que se passou e passa neste “território sem povo” ao transplantar para ele este “povo sem território” .
Não se pretendeu aqui realizar um estudo exaustivo dessa discussão em Benjamin. Sua posição é sui generis ou “distante de todas as correntes (...) e na encruzilhada de todos os caminhos ...” (LÖWY, 1989, p. 28). Fora feito apenas um recorte nesta documentação, analisada a fim de caracterizar uma face, hoje, desprezada dessa discussão. O debate referente e Questão Judaica é hodiernamente hegemonizado pela perspectiva sionista em suas diferentes matizes, no entanto prepondera, no senso comum, o viés direitista.
Relegada a crítica roedora dos ratos, a discussão, realizada no primeiro lustro do século XX, sobre a Questão Judaica pode ter seu destino como a criança descartada junto a água da bacia. A construção da identidade de judeu como sionista é, convém destacar, um artifício imposto para legitimação da política de estado israelense. Mas é também, paradoxalmente, um dos novos argumentos utilizados pelo anti-semitismo. Antes de tudo procurou-se ressaltar: o cordeiro padece pela gana do lobo. O lobo não tem cessado de vencer.


Bibliografia


ARENDT, Hannah. La tradición oculta. Buenos Aires: Paidós, 2004.

Deutscher, Isaac. O judeu não-judeu e outros ensaios. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.

BENJAMIN, Walter. Personages Alemanes. Barcelona: Paidós, 1995.

______. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo : Brasiliense, 1985. . (Obras Escolhidas; 1)

BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. São Paulo: Perspectiva, 1993.

ISRAEL. O que é sionismo. Jerusalem: Israel Information Center, 1986

MARX, Karl. Critica ao programa de Gotha In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. são Paulo: Alfa-Omega, [n.i.] V.2.

LÖWY, Michael. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central: um estudo sobre afinidade eletiva. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.

______. Romantismo e Messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990.

SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 1989.

______. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.

Ao pretenso ditador em mim

Onanlegrense
ser em formatação por instituições falidas e hipocritas

“O mais puro gosto do mel
é apenas defeito do fel
e a guerra é produto da paz”



Que vale hoje falar em paz? O que é paz? Existe possibilidade para a paz?
Diz o dicionário: “Ausência de lutas, violências ou perturbações sociais; tranqüilidade pública; concórdia, harmonia” .
A que custo se obtém tal paz?
Poderia dizer, como Gramsci em sua “Teoria ampliada do Estado”, que a este cabe ser o condutor, tanto por meio da força quanto pelo consenso, da paz. na sociedade.
Esta ausência de conflito, esta paz, poder-se-ia dizer que apenas existe exteriormente. Ou seja, à luz do Leviatã, o órgão centralizador e detentor da coação, é evitado o “pior dos males”, as perturbações sociais. Sendo isso, pode-se dizer que a paz em sociedades e entre sociedades é, em geral, posta de maneira exterior, ou melhor, imposta, constituindo violência e portanto não é paz. A paz, se existe, é paz-política é não paz-natural.
E, remetendo-se ao clássico da filosofia política, Maquiavel, deve ser o governante “amado ou temido”? Mesmo um consenso não pode ser obtido unicamente pela boa-vontade das partes. Em geral, o consenso parte também de uma imposição arbitrária, sendo dessa maneira violência, por vezes não aparente e tida como legitima. O consenso total, portanto, não passa de uma ilusão que leva a se falar em consenso relativo e graus de consenso. De maneira ampla é possível dizer que em uma democracia-moderna o consenso seja a exceção enquanto o conflito seja regra. Diria ainda que a democracia é regime que propicia a constatação de lutas sociais e, conseqüentemente, a democracia-moderna é por excelência não pacífica.
Giacomo Sani diz a respeito do totalitarismo:

Nestes regimes, seja porque é vedada a expressão de opiniões contrárias aos princípios fundamentais do regime, seja porque é negada a legitimidade de forças de oposição que estimulem e solidifiquem posições discordantes, seja enfim, porque os diversos subsistemas possuem pouca autonomia e o regime invade por assim dizer toda a sociedade, as divergências de opinião sobrevivem apenas clandestinamente, aparecem pouco externamente, levando o observador a superestimar o êxito do sistema em conseguir a adesão de amplos estratos sociais.

Desse modo, o mecanismo pelo qual o Totalitarismo cria ilusão de consenso é a deslegitimação de heterodoxias; é a supressão (aparente) da diferença. Ou seja, a paz-política que pode ser aparente em um tal regime é a negação arbitrária da não paz-natural.
Afirma Hannah Arendt, sobre estes mecanismos:

... os movimentos totalitários [freqüentemente] usam e abusam das liberdades democráticas com o objetivo de suprimi-las. (...). As liberdades democráticas podem basear-se na igualdade de todos os cidadãos perante a lei; mas só adquirem significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são representados por elas, ou formam uma hierarquia social e política.

Portanto, o consenso tem sua gênese na criação de direitos formais onde, de fato, o uso desses direitos é vetado pela supressão das diferenças. Assim, tenta-se reproduzir de qualquer maneira a ortodoxia. Ou seja, o totalitarismo, em parte, tem elementos do liberalismo, onde a questão ideológica formal, na realidade objetiva, funciona, como afirmou Marx, parecendo uma câmara escura onde as coisas estão virtualmente de cabeça para baixo. Dessa maneira, a supressão de divergências, ou melhor, de uma contestação da contradição teoria e prática - onde está imbricada a ideologia em seu sentido de falsa consciência – é tido como um problema à organicidade e paz-política de um sistema pelo qual deve ser reproduzida a “práxis” vigente. Assim, busca-se manter aparentemente as coisas em um status quo “semi-estático”, dado que a contestação normalmente se preserva num modelo heterodoxo, sendo as lideranças desse campo normalmente desestimuladas e tolhidas.
Mecanismos como esse do totalitarismo estão presentes, em geral, em todas as formas de governo, pois mesmo a educação tem seu nível de supressão ou superação das divergências pelo arbítrio de um professor, aquele que é tido e se tem como um detentor de saber acumulado. De certa maneira na educação, em seu sentido amplo e real estes mecanismos são a metodologia aplicada para a manutenção da própria sociedade. Em outras palavras a sociedade tem tendência a reproduzir-se por meio destes mecanismos. As divergências tendem a ser normalizadas, por exemplo – como mostrou Foucault – por sanções.

Na essência de todos mecanismos disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma ‘infra-penalidade’; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.
Mais adiante:
(...) Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e dar uma função punitiva aos elementos aparentemente diferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo tudo que possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.

Um modelo escolar tem por intuito funcionar como um todo orgânico, tendo uma norma geral seguindo um referencial filosófico, ou seja tem um arbitrário social imposto a todas as ramificações onde a escola se insere e assim, a sociedade em geral. Pode-se dizer em consonância com Althusser que a escola é prima dona dos “aparelhos ideológicos do Estado”, espaço de reprodução de ideologia, mas além disso a escola funciona também como um aparelho disciplinar, parafraseando Raul Seixas e Marcelo Nova , formam “dobermans do sistema”. Os sujeitos sentados nas carteiras são constantemente disciplinados por meio tanto de uma inculcação ideológica quanto por mecanismos de punição das diferenças, o mais visível o uso do “grau” e mecanismos avaliativos pelo professor.
Poder-se-ia dizer que tanto os mecanismos disciplinares quanto a inculcação ideológica são complementares e em certo grau antinômicos. A luz de Gramsci estes mecanismos poderiam ser traduzidos em sua mais célebre antinomia: a força e o consenso. A ideologia, em sua acepção de falsa consciência, é corroborada para ter sua eficácia por mecanismos disciplinares. Numa relação complementar à eficácia ideológica, os mecanismos disciplinares fazem os sujeitos agirem de maneira o tanto quanto menos punível, a fim de que se possa crer, por exemplo, que “todos os homens nascem livres e iguais”. Por outro lado, também a inculcação ideológica faz com que os sujeitos pensem que a normalização ou a “universalidade punível-punidora” sejam tidas como naturais e, destarte, não contestem, sendo assim violentados sem perceber. Pode-se dizer, portanto, dominados onde a autoridade punidora, o professor, é o único “ator” . Certas objeções podem ser feitas quanto a isso, dado que viso o professor como autoridade, à luz das modernas pedagogias. Todavia, nota-se, com relativa abrangência, a incoerência entre a teoria e a pratica, sendo que normalmente o discurso é aliado a uma teoria politicamente moderna e “emancipatória”, enquanto a prática ainda se baseia na pedagogia mais tradicional e conservadora, ou seja a prática e lógica estabelecidas historicamente,e introjetadas nos indivíduos. É possível dizer que o processo educativo é uma violência para com os sujeitos donde obtém-se graus de consenso e manutenção, de certa maneira, do status quo.
Retomando a um nível macro, a formação de sujeitos históricos, tendo em vista o exposto, engendra a ilusão de paz, dado que estes pouco notam o arbitrário e a violência que sofrem ou acham que não devem contestar ou crêem que isto é natural ou são punidos por não terem a ilusão. A paz-política é a violência sobre a maioria que se destitui mesmo de seu “direito de expressão” – este formal - e, sobretudo, torna o homem “lobo de si”, executando o ideal hobbesiano da maneira mais perversa possível, isto é, um autófago.

Sexo em Moscou

Quando comecei a passear meus dedos
Pela sua marighelazinha já ficando molhada
Ela teve medo e recuou na resistência:
- Stálin! Stálin
Mas depois deu uma olhada
Viu meu sputnik pronto a entrar em órbita
E exclamou feliz da vida:

- Que vara! Que vara! Que nikita mais krutschev!
Eu era o sessenta
Ela era a lunátika Rainha Lunik IX
Me senti como se estivesse dando um xeque-mate
No próprio Karpov
E por não ser nem fidel e nem castro
Lambí sua rosa de luxemburgo
E a linda bolchevique gemia tesudinha:
- Ai, língua de seda,
Maravilhosa,
Me lenine toda,
Meu bem!
Me lenine toda,
Todinha!
Arranhava minhas costas com suas unhas de mil caranguejos
E sussurava entre beijos:

- Marx! Marx!
E o colchão de molas rangia: Mao tse tung!
Mao tse tung!
Fiquei putin.
Trocamos de cama
E a outra cama gemia assim:
Yeltsin! Yeltsin!
Me chamou de seu tesão
Maiakovsky do sertão
Engels azul do meio-dia
Poeta do real
Sua fantasia
Olhou-me nos olhos e disse:
- Tú és o meu Brejnev!
E ficamos por um tempão
Deitados no colchão de neve
E nos amávamos
Esperando o intervalo
Entre uma o outra greve
Trotsky!
Ela tinha uma xexeniazinha maravilhosa
Que deixava lamarcas
E quando o êxtase atingiu
Ao seu máximo górki
Quando estava prestes
A acontecer um orgasmo dissidente
Sussurou rangendo os dentes:
- Chove dentro de mim
Chove, chove,
Gorbatchev!

Hannah Arendt / até que se produza o advento do Messias

“Evidentemente, como os sionistas representavam um movimento nacional e somente podiam pensar em termos de nação, não se deram conta de que o imperialismo é um poder letal para as nações, por isto que todo povo pequeno que se converta em seu aliado ou em seu agente está firmando sua própria sentença de morte. Além disso, até hoje ainda não compreenderam ao todo que, para um povo, uma proteção obtida em troca de defesa de interesses imperialistas é uma proteção tão segura como a corda para o enforcado. Quando se objeta isso, os sionistas frequentemente respondem dizendo que, afortunadamente, os interesses nacionais judaicos e britânicos são idênticos, portanto não deve se falar em proteção senão de aliança. Na verdade, resulta muito difícil saber que interesses nacionais, e não imperiais, pode ter Inglaterra no Oriente Médio; pelo contrário, não é nem um pouco difícil predizer que, até que se produza o advento do Messias, qualquer aliança entre um lobo e um cordeiro só pode ter conseqüências devastadoras para este último” (Hannah Arendt)

Hannah Arendt / A história política do sionismo

“a história política do sionismo há de ocupar-se fundamentalmente de forças que não tem sua origem no povo judeu: deveria ocupar-se de homens que, enquanto seguidores de Theodor Herzl, acreditavam tão pouco como ele no governo do povo, mesmo que também é certo que todos eles desejavam fazer algo pelo povo. Sua vantagem era que, ademais de uma cultura geral européia, tinham certa experiência no trato com governos. Autodenominaram-se sionistas políticos, termo no qual se expressava seu especial e exclusivo interesse pelas questões de política exterior” (Hannah Arendt)