Segunda Roda:uma homenagem a Bucefalo Caligulis e Onanlegrense Tavarish

sábado, 9 de janeiro de 2010

BENJAMIN E A QUESTÃO JUDAICA:

um estudo a partir da correspondência com Gershon Scholem


Airan Milititsky Aguiar*


Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin


À Guisa de Introdução


Qual inimigo poderia haver para perspectivas tão distintas sobre o destino dos judeus, como as apresentadas na correspondência entre Walter Benjamin e Gershom Scholem? Qual não poderia ser que não fosse o famigerado anti-semitismo, em especial na Alemanha, da qual ambos “eram filhos”?
Bastante curioso que hoje, novamente, esse inimigo volta a mostrar desveladamente suas faces, às vezes em vestes tão antigas como as apresentadas nos Protocolos dos Sábios de Sião. Parece que o “prognóstico”, sábio bom senso, apresentado por Hannah Arendt (2004, p. 156) se confirma:
Na verdade, resulta muito difícil saber que interesses nacionais, ou imperialistas, pode ter a Inglaterra no Oriente Próximo; pelo contrario, não é nada difícil predizer que, até que não se produza o advento do Messias, qualquer aliança entre um lobo e um cordeiro somente pode ter conseqüências devastadoras para este último.
O debate referente à Questão Judaica no inicio do século XX é profundamente multifacetado e denso, no entanto pode ser definido provisória e esquematicamente na oposição entre assimilacionistas e sionistas. O sionismo, nacionalismo judaico, foi criado no final do século XIX , tendo como expoente o intelectual Theodor Herzl, numa tentativa de, ao criar um lar pátrio – um Estado judeu – superar a Questão Judaica. Um de seus precursores foi Moses Hess, interlocutor e colaborador de Marx e Engels, ao publicar a obra “Roma e Jerusalém” em 1844. Grande parte da literatura aponta para o caráter minoritário, dentro do povo judaico, deste posicionamento até a segunda Guerra Mundial. O chamado assimilacionismo tinha como estratégia a integração do povo judeu nas comunidades em que viviam, há séculos, na diáspora. Acusados pelos sionistas de desejarem o “suicídio do judaísmo”, na realidade nunca pretenderam uma assimilação total. Este posicionamento tinha como horizonte de ação, sobretudo, o respeito pela diferença. Esta clivagem no seio da judiaria, hoje em dia, é bastante desconhecida.
Com o advento da criação do Estado de Israel, em 1948, surgem argumentos perpetrados através do Aparelho de Estado e suas agências como o Israel Information Center (1983, [n.i.]), que afirma: “Judeus sempre foram sionistas no sentido de que a restauração do povo judeu no seu lar pátrio, é um dos princípios básicos do judaísmo” Pode-se questionar esse tipo de informação hegemônica, através de uma simples historicização dos conceitos de pátria, sionismo, povo etc. No entanto tal análise foge do escopo deste trabalho.
Com intuito de demonstrar que a construção do Estado de Israel não foi [e nem é] um consenso entre os judeus como forma de emancipação ou superação da Questão Judaica, pretende-se analisar principalmente a correspondência – entre dois grande intelectuais judeus – Walter Benjamin e Gershom Scholem, bem como as memórias deste sobre esta amizade, no que diz respeito exclusivamente a essa dimensão. Adverte-se desde já que, no entanto, em diversas ocasiões essa perspectiva está submersa em discussões relativas à própria sobrevivência de Benjamin e sua possível ida, a passeio ou definitivamente, à Palestina.
A correspondência analisada, corpus principal deste trabalho, é composta de 128 cartas. De Benjamin a Scholem, referentes à sua situação durante a tomada de Poder por Hitler, datadas entre 25 de junho de 1932 e 28 de fevereiro de 1933, são 11 cartas. O resto do conjunto é formado por 65 cartas e postais de Benjamin, 55 de Scholem a Benjamin, bem como uma da ex-esposa de Benjamin, Dora, a Scholem, datadas de março de 1933 a fevereiro de 1940. Essa classificação foi feita por Scholem (1993, p.13) para fins de edição em ordem cronológica.


Da Correspondência


Walter Benjamin dispensa apresentações, filósofo e crítico de arte conhecido e reconhecido pelo seu trabalho. Já Gershom Scholem é um personagem pouco conhecido no Brasil, mas muito importante. Sua obra é fundamentalmente um estudo sobre o misticismo judaico. Torna-se um dos principais estudiosos da Cabala no século XX, ao ser o primeiro catedrático de História da Cabala da Universidade de Jerusalém. Realiza um longo trabalho de consulta a manuscritos originais dos mais diversos místicos da história do judaísmo, estudo que é sistematizado na sua obra magna “As grandes correntes da mística judaica”. Amigo de Benjamin dos tempos de faculdade torna-se um de seus principais interlocutores, pessoa de confiança para assuntos de foro íntimo – interessante, sobretudo, dado o caráter bastante reservado de Benjamin.
A correspondência entre estes intelectuais é muito rica, contendo desde assuntos pessoais como a segurança de ambos, de suas famílias e amigos até trocas intelectuais do mais alto nível. Scholem é um dos principais interlocutores de Benjamin no que se refere a temas judaicos bem como a filosofia em geral, o que é comprovado pelo testamento de Benjamin no qual dá a Scholem os direitos sobre todos os seus manuscritos (SCHOLEM 1989, p.185-186). O que parece ser uma constante em missivistas a troca de favores é recorrente, algo que pode ser encarado como uma economia do Dom, própria da literatura epistolar.
A documentação principal do presente trabalho possui uma história bastante interessante. Scholem acreditava não ser possível reunir novamente a correspondência trocada com seu amigo. Em 1966, 26 anos após a morte de Benjamin, Scholem toma ciência da existência de um fundo no Arquivo Central de Potsdam que continha suas cartas enviadas a Benjamin, entre outros documentos. Isso torna possível reconstituir a série de missivas ë naquele ano que, pela primeira vez depois da morte do amigo, pôde consultar o arquivo desse espólio aprendido pela Gestapo e arquivado na Alemanha Oriental, o que desde 1945 tinha dado como perdido e impossível de encontrar. Teve acesso a fotocópias apenas em 1977 quando completara 80 anos, nas suas palavras “meu mais valioso presente nesse aniversario” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 12-13).
Ao que indica a correspondência analisada, ambos possuíam uma forte ligação com este tipo de literatura. Scholem publicou mais de uma vez suas cartas com Benjamin, bem como suas memórias dessa amizade. Por sua vez Benjamin havia publicado no jornal Frankfurter Zeitung entre 1931-32 uma coletânea de missivas comentadas de vários autores sob o nome “O Povo Alemão”, cujo subtítulo é “romantismo e burguesia em cem anos de literatura epistolar” o que parece ser um trabalho pioneiro no campo do que vem sendo chamado de “Escritas de Si” ou “Escritas do Eu”. Ademais, existem inúmeras referências a cartas de diversos autores na correspondência entre eles.
Ao contar a história de sua amizade com Benjamin, Scholem (1989, p. 14) relembra:
Visitei-o pela primeira vez em 31 de julho de 1915. (...). Ocupava-se com a essência do processo histórico e tinha suas idéias sobre a filosofia da história. Por isso, interessou-lhe o que eu dissera e pediu-me que lhe explicasse o que pretendia com minhas palavras contra Hiller. Assim, logo chegamos a falar de coisas que então me atraiam em especial, ou seja, sionismo e socialismo.
Indicando, portanto, que um dos principais pontos de afinidade e aproximação entre eles foi a discussão referente ao futuro dos judeus, passando pelas perspectivas do sionismo e do socialismo, em suas mais diversas matizes.
Ainda nestas memórias Sholem (1989, p. 29) recorda:
Escrevi então em meu diário: “Quando refletimos por muito tempo sobre certos assuntos, é possível surgir uma afinidade com uma companhia tão frutífera, inspiradora e irreverente. De tais assuntos não posso falar com Brauer [meu amigo de infância], nem com outros; não posso falar com os sionistas sobre meus interesses sionistas, de fato um assunto deprimente de ambas as partes... Tenho de dirigir-me ao não-sionista e não-matemático Benjamin, que tem sensibilidade onde a maioria dos outros não reagem mais”.
Embora no corpus documental, composto pelas cartas, essa discussão apareça expressamente – em formulações especificas – poucas vezes, o debate referente a Questão Judaica permeia esta correspondência. Ainda que seja impossível classificá-los em algum lugar consagrado no espectro político, ambos se posicionavam à “esquerda”, todavia Scholem era um sionista , porém não marxista, ao passo que Benjamin reivindicava essa posição.
Nesta discussão, sobre a posição de ambos, inúmeras cartas se prestam para se pensar em que lugar Benjamin se encontrava, sobretudo a partir das discussões sobre suas produções intelectuais. Referente a posição de Benjamin, Scholem questiona:
O ensaio para a Zeitschrift für Sozial Forschung não consegui entender até o momento. Seria uma profissão de fé comunista? Caso contrario, o que é afinal? Devo confessar-lhe que este ano realmente não sei onde você se situa. Apesar de todas as tentativas das quais você deve lembrar, nunca consegui que me esclarecesse sua posição. (BENJAMIN; SCHOLEM, p. 154)
Refere-se nessa carta, de 19 de abril de 1934, ao artigo sob encomenda a Benjamin intitulado “A posição do escritor francês na atual sociedade”. O próprio Benjamin advertiu, em sua carta de 19 de abril de 1933, a Scholem que este ensaio “representa uma impostura, pela circunstância de ter de escrevê-lo aqui [Ibiza], quase sem literatura de consulta, ele adquire uma face até mágica ...”(BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 66)
Em sua resposta a Scholem, em 6 de maio de 1934, Benjamin não deixa clara sua posição, mas adverte sobre qual ela não seria, a saber:
Que novidade poderia traze-lhe? Que meu comunismo, entre todas as formas possíveis e tipos de expressão, jamais assumiu a de um credo? Que ele, as custas de sua ortodoxia, não é mais do que a expressão de certas experiências que fiz em minha vida e em meu pensamento; que é uma expressão drástica, mas não infrutífera, da impossibilidade atual de uma produção cientifica, impossibilidade de oferecer um espaço ao meu pensamento e à minha existência, diante da atual forma econômica; que ele representa a única tentativa racional para alguém quase completamente privado dos meios de produção, de proclamar direitos a isso em seu pensamento bem como em sua vida ... ...”(BENJAMIN; SCHOLEM, 1993,p. 158-159)
No entanto, um trecho, bem compreendido por Scholem, revela uma dimensão fundamental do posicionamento de Benjamin. Embora inserido no contexto de umas das discussões sobre uma possível permanência de Benjamin na Palestina, revela um leito profundo desse posicionamento.
Acho que poderia pairar uma certa ambigüidade sobre minha aparição por essas novas orlas. Milhares de intelectuais têm chegado aí. Uma coisa me distingue dos demais; e isto só à primeira vista representa um ponto a meu favor. Mas então – como você sabe muito bem – a vantagem é deles. Esta: a de serem folha em branco. Nada teria sobre mim um efeito tão funesto como adotar uma posição a ser entendida da seguinte maneira: aproveitar-se de uma calamidade pública para encobrir uma particular. Ë preciso fazer essas ponderações, pois não tenho nada e me prendo a muito pouco. Diante dessas circunstâncias, convém evitar qualquer situação equívoca, porque poderia ter conseqüências excessivamente graves. Irei à Palestina de boa vontade e plena disposição se você, ou aqueles que vêm ao caso alem da sua pessoa, estiver convencido de que isso é possível sem levar a tal situação. E me parece que a mesma condição pode ser formulada na seguinte pergunta: há ali para mim – para aquilo que sei e que sou capaz - maior margem de ação ou espaço do que na Europa? Porque se não for maior, então será menor. Esta frase dispensa explicações. E esta ultima, idem: que não faltará determinação de minha parte, se ali puder aumentar meu saber e a minha capacidade, sem abrir mão do que já foi adquirido. (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 90-91)
Esta carta a Scholem de 16 de junho de 1933, revela uma dimensão ética do comunismo de Benjamin. Tal dimensão surge a partir da expressão de não ser “uma folha em branco”. Benjamin coloca seu comunismo homólogo ao radicalismo ético exposto por Marx ([198-1] p. 214-215) na “Crítica ao programa de Gotha”
Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. ...”
Benjamin, ao que indica, tinha como horizonte a ruptura do “Reino da Necessidade” para o “Reino da Liberdade”, o que dá o lugar tanto de sua posição político-ideológica, quanto de sua posição sobre “Israel” e a Redenção. Nesse sentido, a solução da Questão Judaica está, para Benjamin, envolvida num processo de emancipação de toda a humanidade. “Israel” em Benjamin tem uma conotação espiritual, o que pode ser evidenciado sobretudo em suas “Teses sobre o conceito de história” numa dimensão teológico-messiânica. Nesse aspecto, Scholem é seu interlocutor pois possuía grandes conhecimentos de mística, história e filosofia judaica um dos temas recorrentes em suas discussões filosóficas, por exemplo, no que concerne a interpretação da obra de Kafka.
Todavia, é impossível afirmar que Scholem não compreendera a carta de Benjamin, pois fora militante vinculado ao grupo de Rosa Luxemburgo e seu irmão mais velho, deputado no Reichstag (Parlamento Alemão) pelo Partido Comunista. É justamente a associação dessa dimensão ético-política a uma dimensão messiânico-religiosa que parece não estar ainda bem trabalhada, à época, na consciência de Scholem sobre o posicionamento de seu amigo. Scholem parece ter uma repulsa ao marxismo e as interpretações realizadas “a luz da luta de classes” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 198). A compreensão é evidente em sua coerente resposta a Benjamin.
Aliás, você está equivocado se pensa que milhares de intelectuais já vieram a Palestina. Não é nada disso! Os imigrantes vêm de outras camadas muito diferentes, entre eles há muita juventude, muitos comerciantes, muito ortodoxia. E os intelectuais além da esfera dos médicos, juristas e professores, só estão essencialmente representados pela figura, um tanto difícil, Gustav Steinschneider, e mesmo a permanência deste no país não deve se prolongar muito, a meu modo de ver. (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 97)
Esse comunismo radical, fundamentalmente ético de Benjamin, apresenta um paradoxo apontado por Scholem em suas memórias sobre esta amizade.
Para mim as idéias de Benjamin possuíam uma aura moral irradiante; na medida em que eu podia penetrar nelas intelectualmente, tinham uma moralidade própria, ligada a sua relação com a esfera religiosa que então estava clara e abertamente no ponto de fuga de seus pensamentos. Em contrapartida, na relação de Benjamin com a vida cotidiana, havia um elemento estritamente amoral, com o qual não pude conformar-me, embora ele o justificasse com seu desprezo pelo mundo burguês. (SCHOLEM, 1989, p. 62)
Neste trecho das memórias sobre sua amizade, Scholem lembra das discussões que tiverem em maio de 1918 junto a Benjamin e Dora, então esposa de seu amigo, em Berna, onde estes residiam. Benjamin tinha noção desse paradoxo quando escreve a Scholem em 6 de maio de 1934, que “raras vezes, (...), tentei expressar o conjunto contraditório do qual emergem minhas convicções em cada uma de suas manifestações”( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 158). Ele consciente se auto-imagina na face de Janus. Esse conjunto contraditório é analisado por Löwy, que aponta para a parcialidade dos estudos onde “críticos ou adeptos preferiram não olhar senão uma das faces, ignorando a outra” (1989, p. 108). Essa dimensão religiosa, ao qual Scholem refere estar o ponto de fuga dos pensamentos de seu amigo é, até o final da vida deste, um ponto marcante e indispensável para a compreensão de suas posições.
Nesta dimensão, Löwy (1989, p.85) analisa que Walter Benjamin “seria um dos raros autores nos quais a afinidade eletiva entre messianismo judaico e utopia libertária resultou numa verdadeira fusão, isto é, no nascimento de uma forma de pensamento nova, irredutível a seus componentes”. Relembrando que o deus romano Janus “tinha, com efeito, duas faces mas uma só cabeça, as “faces” de Benjamin são manifestações de um único e mesmo pensamento que apresentava simultaneamente uma expressão messiânica e uma secular” (LÖWY, 1989, 108). Ou seja, sua obra é perpassada por essa dimensão religiosa, e apenas a partir de sua compreensão e sua acomodação em seu pensamento que pode ser estabelecido o devido lugar de suas idéias, também, na sua correspondência, no que concerne a Questão Judaica.
Dentro desse espírito, é compreensível o que Scholem chama de “Correspondência da Primavera de 1931 sobre o Materialismo Histórico”. Nesta, em forma conclusiva, Scholem aponta que Benjamin estava “exposto ao perigo mais pelo desejo de comunidade, mesmo que seja a comunidade apocalíptica da revolução, do que pelo horror da solidão de que tanto falam suas cartas.”(1989, p. 230)
No entanto, ao que tudo indica este desejo de comunidade não tinha como horizonte de ação Israel [a Palestina], menos ainda sob a égide do sionismo. Ainda na discussão sobre a ida de Benjamin a Palestina, por volta de 1933, Scholem coloca um óbice a sua viagem.
Decisivo para sua vida aqui seria tão-somente a questão de saber se aqui você poderia aplicar seus conhecimentos e capacidades. Minha vida na Palestina só se tornou possível (...) porque me sinto comprometido com esta causa até o fim, mesmo que ela me leve ao abismo ou ao desespero, do contrário, uma mudança questionável pelo que representa sobretudo em matéria de perda do idioma e soberbia, já teria acabado comigo. Esta decisão não lhe seria poupada aqui, muito menos a uma pessoa de sua visão e experiência. ( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 100)
Ao que Benjamin responde:
Quando várias semanas atrás, você levantou pela primeira vez a questão de uma possível ida minha a Palestina, em nenhum momento considerei que a Palestina representasse apenas um lugar mais ou menos apropriado à minha permanência. Mas como na sua ultima carta você partiu do princípio que essa era minha concepção, para então revidá-la de forma suave mas determinada, não posso deixar de corrigi-lo. Não, em nenhum momento considerei uma solução dentro da margem do possível, que se concretizasse uma permanência sob a base de seguir mantendo a linha do meu trabalho. E simplesmente pelo fato de haver levantado a questão de minha ida a Palestina, creio reconhecer de sua parte uma disposição ousada – se bem que não necessariamente leviana – a de subordinar a questão de minha ligação com a causa do judaísmo à apreciação da experiência. (...). Mas nunca tive a menor dúvida de que esta questão – bem como qualquer outra essencial que tenhamos abordado – será decidida perante o “fórum” do hebraico, por mais que a circunstâncias tornem difícil para mim dizê-lo com palavras, que bem ou mal, pareçam gastas ou pouco convincentes. E se apesar disso o faço, é pelo menos na intenção de realçar este fórum frente a outros que poderiam ser cogitados. Pois é evidente que nenhum de nós dois se disporia a investigar o meu grau de “ligação com a causa do sionismo”, assim como ninguém faria uma coisa dessas em relação à forma de vida ortodoxa de Ernst David ou à crença em Deus de Käthe Ollendorf. O resultado poderia ser totalmente negativo. Mas não nego certas conexões. .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 106-107)
Sobre tais conexões pode-se afirmar que Benjamin deixa claro novamente quais não podiam ser na correspondência de 8 de abril de 1934, onde coloca um problema sobre a publicação de seus escritos por uma editora judaica.
Um outro passo, porém, deve estar no âmbito das suas possibilidades Wiesengrund [Adorno], me escreveu de Berlim que Erich Reiss manifestou um vivo interesse pela Infância Berlinense no Século XIX. O problema é que a editora ultimamente segue uma linha sionista. No que Wiesengrund, com razão vê certas dificuldades. Para superá-las haveria algumas perspectivas caso você pudesse lhes expor certas paginas judaicas do meu livro, digamos como um perito que dá seu parecer. .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 148)
Ao que Scholem responde “você superestima muito minha sabedoria, achando que eu poderia esclarecer e demonstrar ao editor ‘o lado judaico’ do seu livro, que até para mim é bastante obscuro.” .( BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 154)
Quais conexões são essas com o judaísmo, com a causa do judaísmo, ou com a superação da Questão Judaica? Torna-se evidente a tomada de posição de Benjamin que, como dito em sua juventude, sua filosofia seria uma filosofia do judaísmo (SHOLEM, 1989, p. 41). O trabalho de analisar a afinidade eletiva entre certo messianismo judaico e utopias libertárias em Walter Benjamin já foi realizada pelo sociólogo brasileiro radicado na França Michael Löwy. Em síntese Lowy aponta que Benjamin seria não
“apenas um crítico literário ou um renovador da estética marxista: o rasgo profundo de sua obra, ..., é uma nova concepção da história, que se encontra esboçada nos escritos dos outros pensadores messiânico-libertários mas atinge nele sua mais alta expressão filosófica.” (1989, p. 86)
Em caráter de exposição provisória pode-se apresentar a seguinte perspectiva do messianismo judaico, presente na visão de mundo de Benjamin, a partir dos estudos de Scholem, também utilizados por Löwy, sobre a História da Mística Judaica.
O Tikun, literalmente restauração, é o centro do misticismo de Isaac Luria, cabalista judeu nascido em Jerusalém no ano de 1534 e falecido em Safed por volta de 1572. Segundo Scholem, o pensamento de Luria e sua escola “foi o ultimo movimento do judaísmo, cuja influência veio a ser preponderante em todos os setores do povo judeu em cada país da diáspora, sem exceção” (SCHOLEM, 1995, p. 288).
A teoria do Tikun pode ser sintetizada como a reconstituição da harmonia quebrada, no plano humano, com a queda de Adão ao comer o fruto da árvore do conhecimento. A partir dessa queda, o povo judeu foi obrigado a viver em estágios transmigratórios. A vida nesses estágios é chamada de Galut, literalmente exílio, mas no sistema luriânico, conforme Scholem (1995, p. 286-287), adquire um novo significado:
Anteriormente fora considerado [o galut] (...) quer um castigo pelos pecados de Israel, quer uma provação para fé de Israel. Agora ainda é tudo isso, mas intrinsecamente é uma missão: seu propósito é o de reerguer as centelhas caídas de todas as suas variadas localizações. “E este é o segredo por que Israel está fadado a ser escravizado por todos os gentios do mundo: a fim de que possa elevar aquelas centelhas que também caíram entre eles... E por isso era necessário que Israel se espalhasse pelos quatro ventos a fim de levantar tudo”
Para realizar o Tikun, cabe ao homem reordenar essas centelhas e restaurar a harmonia original destituindo a mácula. Segundo Scholem, o homem é parte ativa do processo, pois Deus não pode realizar por seus próprios meios esta “tarefa”. O Tikun acontece, portanto, na vida pública, é um acontecimento visível:
O messianismo judeu é, em sua origem e em sua natureza – nunca é demais insistir nisso -, uma teoria da catástrofe. Essa teoria insiste no elemento revolucionário, cataclísmico, na transição do presente histórico ao futuro messiânico. (SHOLEM apud LÖWY, 1990, P.104)
Nesse sentido da obra de Benjamin concorda-se com Löwy (1989, 109) ao apontar que a
conseqüência profana do messianismo de seus últimos escritos é aumentar sua carga explosiva; contribui para conferir-lhes a qualidade subversiva única que faz das Teses sobre a filosofia da história um dos documentos mais radicais, inovadores e visionários do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach de Marx”


A Guisa de Conclusão


À respeito da identidade judaica de Benjamin, bem como suas posições referentes ao judaísmo, ao misticismo e a Questão Judaica parece ser justo destacar, a formulação de Isaac Deutscher:
Tenho esperança, entretanto, que, juntamente com as outras nações, os judeus – mesmo que tardiamente – se tornem atentos e recobrem a consciência da imperfeição de uma nação estado e achem seu caminho de volta a herança política e moral que o gênio dos judeus, ultrapassando a as fronteiras do judaísmo, nos legou: a mensagem da emancipação universal do homem.(1970, p. 40)
No que diz respeito a posição de Benjamin, Deutscher não precisava ter esperança, deveria ter respeito e admiração.
Neste breve trabalho, sobre a correspondência entre Benjamin e Scholem evidencia-se, no posicionamento daquele intelectual frente a Questão Judaica, uma grande clareza, sobretudo no que concerne ao futuro do Estado de Israel, no qual não via a menor “força vital” para superar o anti-semitismo do qual fora vitimado. O sionismo, apesar de sua lucidez “frente ao futuro dos judeus”, demonstrou-se insuficiente para o cumprimento de seus objetivos mediatos, já que os imediatos – a construção de um Estado – foram realizados. Hoje padece no paradoxo de ser apontado como um nazismo judaico frente à Questão Palestina. Cabe lembrar, a também amiga de Benjamin, Hannah Arendt (2004, p.147) ao afirmar que “as discussões absurdas entre sionistas e assimilacionistas não fizeram senão ocultar a evidencia de que, em certo sentido, os sionistas foram os únicos que quiseram seriamente a assimilação, isto é, a ‘normalização’ do povo judeu (...), enquanto que o desejo dos assimilacionistas foi que o povo judeu preservasse sua especificidade”. Ainda adverte que o sonho de Herzl era “transplantar o ‘povo sem território’ ao ‘território sem povo’.” Sabe-se bem o que se passou e passa neste “território sem povo” ao transplantar para ele este “povo sem território” .
Não se pretendeu aqui realizar um estudo exaustivo dessa discussão em Benjamin. Sua posição é sui generis ou “distante de todas as correntes (...) e na encruzilhada de todos os caminhos ...” (LÖWY, 1989, p. 28). Fora feito apenas um recorte nesta documentação, analisada a fim de caracterizar uma face, hoje, desprezada dessa discussão. O debate referente e Questão Judaica é hodiernamente hegemonizado pela perspectiva sionista em suas diferentes matizes, no entanto prepondera, no senso comum, o viés direitista.
Relegada a crítica roedora dos ratos, a discussão, realizada no primeiro lustro do século XX, sobre a Questão Judaica pode ter seu destino como a criança descartada junto a água da bacia. A construção da identidade de judeu como sionista é, convém destacar, um artifício imposto para legitimação da política de estado israelense. Mas é também, paradoxalmente, um dos novos argumentos utilizados pelo anti-semitismo. Antes de tudo procurou-se ressaltar: o cordeiro padece pela gana do lobo. O lobo não tem cessado de vencer.


Bibliografia


ARENDT, Hannah. La tradición oculta. Buenos Aires: Paidós, 2004.

Deutscher, Isaac. O judeu não-judeu e outros ensaios. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.

BENJAMIN, Walter. Personages Alemanes. Barcelona: Paidós, 1995.

______. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo : Brasiliense, 1985. . (Obras Escolhidas; 1)

BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. São Paulo: Perspectiva, 1993.

ISRAEL. O que é sionismo. Jerusalem: Israel Information Center, 1986

MARX, Karl. Critica ao programa de Gotha In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. são Paulo: Alfa-Omega, [n.i.] V.2.

LÖWY, Michael. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central: um estudo sobre afinidade eletiva. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.

______. Romantismo e Messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990.

SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 1989.

______. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.

Nenhum comentário:

Postar um comentário