Segunda Roda:uma homenagem a Bucefalo Caligulis e Onanlegrense Tavarish

sábado, 9 de janeiro de 2010

Cultura - reprodução, ação e contestação: o caso do Clube de Cultura

Airan Milititsky Aguiar*




O problema básico da estética não é como se situa uma obra de arte ante as condições de produtividade de uma época, mas como se situa nelas.

Walter Benjamin


O Clube de Cultura foi fundado em 1950, por judeus que haviam abandonado a antiga Liga Cultural Israelita, fundada em 1922, que funcionava junto a Sinagoga Centro Israelita Portoalegrense. Segundo depoimentos, fundada por judeus progressistas.* Em sua ata de fundação o Clube tinha por objetivos

...incentivar o desenvolvimento das artes e letras, criando grupos theatrais já consagrando elementos esparsos de amadores de diferentes, como musica, dança, pintura etc. Proporcionando um clima adequado a emulação e estimulo para o aproveitamento máximo destes valores e favorecer seu aprimoramento.



- Confraternização na primeira sede do Clube de Cultura. Entre 1950 e 1953.


Segundo relatos o Clube era ligado a judeus de esquerda, sobretudo ao Partidão (PCB) e este vínculo proporciona alguns condicionantes. Embora nas atas nada conste sobre inúmeras atividades na década de 50, do século passado, escritores como Graciliano Ramos e Jorge Amado realizaram conferencias nos salões da entidade, ambos intelectuais vinculados ao PCB. Nas atas do Clube há grande relevo para atividades referentes à cultura judaica, sobretudo as comemorações do “Levante do Gueto de Varsóvia” e da Independência do Estado de Israel. Também consta muito freqüentemente referências ao teatro Idish, alguns relatos apontam essa ser a atividade predominante do Clube. Qual motivo para tal discrepância entre as atas e atividades que aconteceram e não são mencionadas, sendo essas de caráter axialmente divergente?
Max Weber coloca uma questão angular para a sociologia da ação: a antinomia entre moral da responsabilidade e moral da convicção. Essa antinomia é guia de seus estudos, por exemplo, em “A ética protestante e o espírito do Capitalismo” Por que me remeter a um dos “pais fundadores” da sociologia? Justamente por essa questão ajudar no entendimento da situação em jogo.
A moral da responsabilidade é aquela que “calcula as implicações de seus atos” pode ser resumida na famosa frase “os fins justificam os meios”. A moral da convicção respeita valores e sentimentos sem preocupar com suas implicações. Ou seja, ela não é desejada, nem ao menos racionalizada. Weber ainda as coloca como complementares.
Em 1950 o PCB é colocado na Ilegalidade e seus quadros perseguidos, por ser taxado pelo Superior Tribunal Federal de organização estrangeira. Desse modo qualquer atividade “subversiva” poderia ser pretexto para algum tipo de perseguição. Relatos apontam para a confecção das atas respeitando algumas complicações. Não deveriam deixar algo que pudesse ser utilizado contra o Clube ou seus membros por qualquer espécie de repressão. No entanto as atividades, direta ou indiretamente vinculadas ao PCB, eram realizadas. A complementaridade da antinomia aqui se faz presente. As atividades que lá se realizaram sempre tiveram por intuito uma formação cultural de pretensões contra-hegemônicas, com o cuidado de não se expor a riscos que pudessem ser utilizados para fechar a entidade, prejudicar seus sócios ou impedir a manutenção da estrutura mínima de seu funcionamento.
Saindo de um plano compreensivo e entrando num plano mais explicativo, esse pequeno detour serve para colocar uma das principais determinações que atuaram sobre a entidade. O Clube de Cultura era um local onde prevalecia uma certa responsabilidade, tanto em relação à manutenção da instituição quanto à preservação de seus membros, sem deixar de ser movido por ações com objetivos não totalmente explicitados, ou seja, realizando atividades que embora pudessem causar “problemas” eram disfarçadas.
O Clube de Cultura era mantido por sócios fundadores, pagantes e juvenis e formado por diversos departamentos, por exemplo, teatro, música, cinema e cultura, onde inúmeros quadros relevantes da “classe artística” gaúcha e alguns com projeção nacional fizeram “escola”. Nesse sentido, nos anos que vão de 1950 até meados dos 80, seu intuito fundamental fora executado: consolidar um espaço para sedimentação de novos quadros artístico-culturais.
Nota-se através das atas que de fins de 1950 e inicio da década de 60 as atividades culturais ligadas à comunidade judaica progressivamente vão diminuindo. Uma das forças que imperam é o movimento de secularização da cultura; o Idish deixa de ser predominante na comunidade, isso é evidenciado sobretudo em alguns relatos. Outra força é a consolidação e ampliação de outras instituições judaicas, que embora de caráter mais recreativo, como o Círculo Social Israelita, podem ser vistas como “mais puras”. Neste caso “pureza” é uma categoria que trabalha no sentido de não misturar a vida sócio-cultural judaica com questões mais amplas, que fogem do domínio da “sociedade especial”. Muito evidente é o posicionamento do Clube ante questões como a “Campanha da Legalidade”, quando publicamente declara apoio as forças legalistas. O Clube mantinha estreitas relações com o IKUF (União Cultural Israelita-Brasileira). Uma das teses que o IKUF encaminha para discussão no Clube em 1958 é:


A parcela consciente da população judaica do Brasil deve combater as manifestações reacionárias que fazem com que a juventude judaica ignore as necessidades do país e encaminham a juventude em direções que não coincidem com os interesses de amplas massas brasileiras com as quais a população judaica está estreitamente ligada. Pelo contrário, atendem aos interesses das camadas privilegiadas que por natureza se inclinam para todas teorias ant-populares [sic] tais como: facismo [sic], racismo, anti-semitismo, que ameaçam a própria existência da coletividade judaica.


Nota-se o posicionamento do IKUF um posicionamento democrático e claramente de esquerda defende os “interesses de amplas massas brasileiras” e ataca o interesse das “camadas privilegiadas”. O mesmo ainda aponta em documento encaminhado junto ao anterior:


O idisch não é mais, hoje em dia, o único idioma das grandes massas judias. Em Israel, a maioria do povo fala hebraico, e nas Américas a nova geração fala a língua do país. A cultura judia deve, pois, ser cultivada nos idiomas falados por grandes parcelas do povo judeu...


Estas duas passagens reafirmam as correlações de forças supracitadas. A coletividade judaica passava, passa ainda, por um processo de secularização, que abrangia não só o Rio Grande do Sul mas o Brasil como um todo, bem como podemos dizer toda a comunidade das diásporas. A segunda citação é referente ao um movimento que busca reagrupar a comunidade colocando as entidades culturais dentro das novas formas de organização societária; nas atas do Clube, pós-1960, existe uma forte preocupação em se adequar com as novas gerações; o Idish perdera seu lugar como amalgama dessa comunidade.
O Clube de Cultura pode ser enquadrado dentro do conceito gramsciniano de aparelho privado de hegemonia (APH), ou seja, “organismos de participação política voluntários, e que não se caracterizam pelo uso da repressão”. O APH é o espaço de difusão de certa ideologia. Ao conjunto dos APH pode-se chamar formação ideológica. Por isso o Clube não pode ser visto isoladamente, tanto entre as instituições irmãs (judaicas) quanto às demais instituições portoalegrenses, pois estas são elementos constituintes das relações de força presentes na sociedade.
O Clube,enquanto APH, é espaço de formação de certa direção político-cultural. Portanto, ele é formador de consensos relativos, consensos hegemônicos ou contra-hegemônicos. O Clube se caracteriza desde seus primeiros momentos como um locus contra-hegemônico, o que pode ser evidenciado na própria diretriz fundamental da entidade, quer seja a de consolidar um espaço para formação e aprimoramento das artes e das letras. Se o analisarmos entre as demais instituições é fácil observar que ele se distingue axialmente. Mormente instituições culturais são legitimadoras da cultura, da cultura já institucionalizada, ou ainda dominante. O Clube pretende ser, desde sua ata de fundação, não um reprodutor, mas sim, um produtor de cultura.
No inicio da década de 1960, tividades novas vão sendo realizadas no Clube, o CPC (Centro Popular de Cultura da UNE) passa a utilizar o espaço para montagem de peças, por exemplo, o “Auto dos 99%”, espetáculo inserido nos debates calorosos que visavam a Reforma do Ensino. Peças de Brecht, Sartre, como “A prostituta respeitosa”, um verdadeiro escândalo na época, passam a ser encenadas no Clube.
Nessa mesma época o Departamento de Juventude passa a tencionar internamente para expandir o campo de associados. Hans Baumann relata:

... Schwartz, eu, Millmann, e outros mais de esquerda resolvemos fazer uma campanha para abrir o Clube, deixar o não-judeu entrar aqui, e atraímos. A velharada não gostou muito, mas não tinha, ou o Clube fazia isso ou morria. Isso ajudou o desenvolvimento cultural aqui.


Ensaio das peças de Qorpo Santo, 1966, Auditorio Henrique Scliar, Clube de Cultura


A renovação atingiu todos os departamentos do Clube, inclusive o de teatro. A primeira montagem do novo grupo foi uma seleção de trechos de um autor à época quase desconhecido: Qorpo Santo. A sátira dos costumes imperiais vira uma sátira dos costumes e vícios da sociedade brasileira da década de 60, sobretudo da burocracia governamental.
Esses são os anos de efervescência cultural do Clube, que em breve passaria por um forte refluxo dadas as novas correlações de força que se apresentam em 1964. Após abril de 1964,o Clube passa por uma dura crise, seus sócios se afastam, o medo de participar do Clube se generaliza. O Clube entra numa nova fase, fase de reestruturação, e sua principal preocupação era a manutenção da entidade.
Nas atas é fácil evidenciar a constante reorganização da diretoria, não havendo uma continuidade mínima, as demissões de cargos diretivos são constantes, o trabalho de direção político-cultural dificulta-se ainda mais. Num contexto tão adverso, quando o Clube fora visitado algumas vezes pelo SNI (Sistema Nacional de Informações) as atividades mudaram de caráter. Um imperativo pragmático impunha-se: como manter a instituição sem sócios? As atividades passaram a ser cobradas. Alugava-se o auditório, o salão para manutenção da entidade. Essa mudança nas atividades não está de todo excluída de uma mudança nas condições sociais de produção cultural.
Até 1964 o Clube tinha certa autonomia de produção artístico-cultural, os sócios mantinham a entidade contribuindo com mensalidades, o que a deixava em parte livre de se inserir nas relações capitalistas. Após 1964 o clube perde grande parte de seus sócios e,para sobreviver, passa a ser também um agente distribuidor de cultura. Distribuidor no sentido de fazer organicamente parte do sistema das artes oficial. A perda de autonomia, corresponde a uma vinculação do Clube a atividades que fogem da sua principal diretriz, legitima-se, também, a cultura dominante.
Esse condicionamento social da produção artístico-cultural afeta também o clube enquanto APH. Uma vez tornado mais difícil o debate, a circulação de informação, um claro posicionamento poderia levar o Clube à ilegalidade, o que não era desejado por nenhum de seus membros. Para tal era necessário que se mascarasse o Clube, que ele não fosse visto como algo patológico para o novo regime. Portanto o trabalho, enquanto uma instância que organizava a sociedade-civil, tornou-se muito difícil.
As atividades de cunho contra-hegemônico permanecem. Por exemplo os grupos de estudo sobre cinema, onde participaram Jorge Furtado e Carlos Gerbase, ambos atualmente expoentes do cinema gaúcho, formando novos quadros artístico-culturais.
Todavia existem duas maneiras de se encarar um objeto, por fora, homogêneo e por dentro heterogêneo. Essa era a tática utilizada pelo Clube, para fora parecer ser uma instituição normal, mas por dentro realizar inúmeras atividades que fugiam de sua imagem externa, debatia-se política, a juventude reunia-se lá, mas sempre com o cuidado de não expor a entidade e seus membros. O Clube de Cultura torna-se referencia cultural em Porto Alegre, lugar de resistência, por mais velada que fosse.
Pode-se concluir, a partir dessas considerações, que a historia do Clube de Cultura é marcada por uma regularidade, uma continuidade, e essa é expressa em seu objetivo fundacional.

...incentivar o desenvolvimento das artes e letras, criando grupos theatrais já consagrando elementos esparsos de amadores de diferentes, como musica, dança, pintura etc. Proporcionando um clima adequado a emulação e estimulo para o aproveitamento máximo destes valores e favorecer seu aprimoramento.


Apesar de todas adversidades que a instituição passou, e passa, ela ainda tem como meta a seguir o desenvolvimento da Cultura. Cultura em maiúsculo, cultura universal, aprimoramento do espírito. Essa continuidade é sua característica central, onde esta imbricada um certo ethos, pode-se dizer que um ethos, próprio do Clube, a responsabilidade na sua preservação e o compromisso em socializar Cultura e Arte. Em colocar debates pertinentes político e culturalmente, em realizar uma certa tarefa, ser um espaço para quem quiser efetivamente produzir cultura e arte. Seu slogan “Clube de Cultura: 54 anos em defesa da Cultura” não é ingênuo, nem indevido, o Clube a muito deixou de ser um clube, ele é por afinco e dedicação de pessoas que passaram grande parte de sua vida lá, um dos poucos lugares onde o novo pode entrar em conflito com o velho.



DOCUMENTAÇÃO

Atas da Diretoria do Clube de Cultura
Atas do Conselho Deliberativo do Clube de Cultura
Pasta de Correspondência Expedida 1960 do Clube de Cultura


DEPOIMENTOS
Hans Baumann


PERIÓDICOS

Correio do Povo 1963-64
Ultima Hora 1963-64



BIBLIOGRAFIA

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